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OPINIÃO

São Paulo e as baratas do cemitério

Costuma-se comentar sobre cidades. Ainda que desconhecendo a psicologia de seus moradores, revelamos uma impressão subjetiva, em vista da disposição arquitetônica, seus centros, ruas, bairros, jardins e outros aspectos. As cidades bonitas nos alegram e estimulam, enquanto as feias nos deprimem. Por consequência, é dever de todo administrador municipal buscar a beleza do respectivo espaço público.

Infelizmente, nos últimos tempos, praticamente em todo o mundo, o conceito de beleza foi substituído pelo conceito de utilidade. Ambos podem dialogar. No entanto, o utilitarismo dos tempos modernos reinou sozinho. Condensados urbanos de concreto, crescidos por força de interesses financeiros e, não, do pensamento criativo do homem, indutores do tédio, tomaram o lugar de belíssimos centros urbanos de séculos anteriores. Construções retilíneas se superpõem caoticamente; um amontoado de “máquinas de morar”, na expressão do arquiteto  Le Corbisier.

São Paulo, no momento em que vivíamos sobre a influência francesa, erigiu seus únicos monumentos que ainda mexem com nossa sensibilidade estética. Vide o Teatro Municipal, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, alguns castelos em seu entorno, na Liberdade e na Bela Vista, a Estação da Luz, para ficarmos restritos ao centro velho. Quem, vindo do interior, descia de um trem na Estação da Luz, tinha a primeira impressão de que aportara em Paris. Doce ilusão, pois jamais o colonizado se equiparou ao colonizador. De todo modo, ainda não tínhamos esse estoque incrível de concreto armado desarrumado, entrópico, que podemos ver do alto, ao nos aproximarmos de nossos aeroportos. Concreto, a mais rígida das matérias, sob a forma de edifícios agrupados sem a harmonia natural das florestas e, passadas suas fronteiras, a favela imensa, agressiva a elementares emoções, forjada em alvenaria ou madeira.

Não há nenhum estilo, feitas poucas exceções de bairros paulistanos. A casa, o apartamento, não passam de um casulo onde estas pobres amebas pensantes se resguardam, nos limites das possibilidades, do sol, chuva e de ventos implacáveis. Amo São Paulo, porque quem ama o feio bonito lhe parece. Tendo assistido sua  claudicante evolução movida exclusivamente a dinheiro, ainda assim é possível a lembrança das várzeas, onde cresciam plantações de alface regadas no entardecer, convertidas em grandes rodovias.

Os milhões de habitantes cada vez se agridem mais e com menos cortesia, Tom Zé. E continuam vindo de todo canto e nação, na busca do ralo ouro da sobrevivência, fato que tende a se agravar na crise. São Paulo é uma cidade de muitos museus e centros culturais, geralmente erigidos pela iniciativa privada. Poucos paulistanos os conhecem. Deveríamos conhecer, pelo menos, os pães feitos nas madrugadas domingueiras pelos monges do claustro de São Bento; sim, ainda temos dessas coisas divinas em nossas plagas.

Estarreceu-nos um fato revelado na véspera do aniversário por um grande jornal de São Paulo. Baratas. Insetos repulsivos que assentaram praça no cemitério São Paulo e catacumbas para, nas noites unânimes, que sucessivos prefeitos prometeram iluminar, passeiam pelas adjacências, ruas Cardeal Arcoverde, Teodoro Sampaio, etc. No escurinho perto das árvores casais de amantes são surpreendidos pela repugnância à altura de contos de Poe. O amor, contudo, supera tudo, até mesmo resquícios transportados por insetos que incomodaram nossos antepassados em seu descanso eterno.

Muitas baratas, jovens, adolescentes e velhas não voltam a tempo ao campo santo e, pelas manhãs, cumprimentam donas de casa e de comércio nas circunvizinhanças. A reportagem traduziu o sentimento de impotência e asco que abala diuturnamente os entrevistados. Diz a Prefeitura que dedetizou 12 cemitérios. Haja baratas resistentes na Pauliceia desvairada e degradada.

Reurbanizar São Paulo e transformá-la numa grande aldeia aprazível, em que o homem e suas construções convivam em harmonia criadora com a natureza, não obstante algumas crenças de urbanistas otimistas, parece-nos tarefa que exigiria inúmeros Napoleões Bonapartes no processo de humanização de Paris. Contudo, iluminá-la, para que suas noites, pelo menos, não acolham no breu denso insetos que corroam nossas inatas propensões estéticas, e inibam violências perpetradas numa umbrosidade medieval, somente não se faz em homenagem habitual ao costume de desprezar, depois de eleições de mentirinhas, a pobre coisa pública brasileira.

(Amadeu Garrido de Paula, jurista brasileiro com uma visão bastante crítica sobre política, assuntos internacionais, temas da atualidade em geral. Além disso, tem um veio poético, é o autor do livro “Universo Invisível”, uma publicação que reúne poesias e contos sobre arte, cultura, política, filosofia, entre outros assuntos, todos os poemas são ilustrados. O livro está à venda no site da livraria Cultura http://www.livrariacultura.com.br/p/universo-invisivel-46024299 e nas livrarias Nobel Santana e Nobel Santo André)

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