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OPINIÃO

Encastelados sem castelo

Estou instalada aqui nesse meu medíocre mundinho de aparente segurança. Escrever é um risco. Os censores costumam aparecer com o lápis vermelho. Sobre minha cabeça um teto, há um chão sob meus pés. Ele está seco, assim, não temos inundação, entra luz natu

Estou instalada aqui nesse meu medíocre mundinho de aparente segurança. Escrever é um risco. Os censores costumam aparecer com o lápis vermelho. Sobre minha cabeça um teto, há um chão sob meus pés. Ele está seco, assim, não temos inundação, entra luz natural pelas frestas, o ar está respirável, tenho energia elétrica, água nas torneiras, dispensa com provisões para alguns dias, posso sair para comer ou pedir comida. Tenho telefone, internet e TV a cabo. Estou vendo, andando e, aparentemente em boas condições mentais. Tenho um filho por companhia, não acumulei, mas não devo, exceto o Imposto de Renda que já está sendo calculado. Ontem à noite saí com amigas. Fomos a um barzinho simples, comer espetinhos de carne e de coração e beber uma bebidinha. Em janeiro viajamos juntas. A noite estava fresca e uma lua quase cheia estava enfeitando e nos chamando a falar de Deus. Alguns me perguntam por que não falo Dele.
Há 36 anos trabalho de manhã e à tarde, por toda a semana. Depois das 18 h descanso, leio, escrevo, visito, participo de reuniões. Uma rotina que massacraria a muitos desejosos de uma existência emocionante. A minha vida, no momento, não emociona. De vez em quando um evento, uma festa. Tenho sorte em ser amada pela minha família. A um grito, logo aparece algum dos meus muito queridos tios. Meu maior tesouro: minha credibilidade.
Uma vida comum não deve servir ao comodismo, ao não olhar em volta, ao não pensar no coletivo. Somos responsáveis pelo conjunto. O solo precisa ter saúde. A árvore que plantamos não é nossa, é da comunidade. A água da nossa cisterna não nos pertence. Apenas a cavamos. O lençol freático é dos que sobre ele vivem. Nem a água da nossa torneira é apenas nossa. É preciso regrá-la para que dê para todos. O ar que respiramos é da coletividade. Devemos mantê-lo com razoável qualidade e deixar o ambiente habitável. Verbos indispensáveis: recuperar, consertar, reutilizar, poupar, reduzir a produção de lixo. Cuidando do nosso quintal, emporcalharemos menos o mundo. Já cometemos muitos erros, somos responsáveis pelo esgotamento de bens não renováveis, pela sujeira e pelo comportamento mesquinho reinantes.
É preciso ter memória e reverenciar os mortos, mas também deixar alimentos para as gerações de amanhã. E os seres vivos? Como os protegemos? O barulho que produzimos é tolerável? Qual é o nosso direito de incomodar o próximo? Como nos comportamos nas ruas? Jogamos lixo fora da lixeira, passamos pelos necessitados com desprezo, vemos a violência e fingimos que não nos atinge? Protegemos os fracos? Receio, cautela, sentido de preservação são indispensáveis, mas que, em nome da aparente segurança não nos deixemos desumanizar de todo. Carros blindados e casas/prédios bunkers são uma necessidade construída ano a ano pela deterioração da nossa espécie. Massificamo-nos, e isso nos parece irreversível.
Vemos alguém ser humilhado, ferido física ou psicologicamente e ignoramos o fato. É cômodo pensar: ainda bem que não é comigo. Quando vemos alguém salvar um desconhecido, nos surpreendemos, a ação vira manchete de jornal. Vídeos de gente que salva gente ou animais tornam-se virais, são loucos a ser estudados. Afinal, o que temos com isso? Queremos é escapar do infortúnio. Caso a fatalidade visite o outro, foi má sorte. E se quase vemos o desastre, viramos o rosto.
Não podemos nos fazer de surdos quando vizinhos brigam e a alteração de vozes se torna perigosa. Não é possível ver/ouvir adultos maltratando crianças e animais. E a pior imoralidade: o que fazer quando nos feriados prolongados um cão uiva pelos dias, noites e madrugadas adentro, intermináveis lamentos durante todo o período, mês após mês? Eu imploro para que alguém o salve, pois ele sofre e sangra ao se arrebentar de dor, pedindo socorro. Todo o quarteirão se contorce em agonia ao ouvir a penitência desse cão infeliz. É preciso agir. Não agindo, somos vermes, isso se não ofendermos aos que rastejam, os comparando conosco.

(Mara Narciso, médica e jornalista)