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OPINIÃO

O relato da repressão politica em Goiás

Eu sou estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal Goiás e também faço curso técnico de Artes. Neste ano, eu e meu amigo (estudante de Design Gráfico, UFG) começamos a gravar e a juntar cenas para fazer um documentário que abordasse as lutas do campo e da cidade. Em janeiro, deste mesmo ano, participamos do Estágio Interdisciplinar de Vivência no Distrito Federal, que nos proporcionou uma aproximação com o movimento campesino, da qual pudemos coletar algumas fotos e depoimentos das pessoas dali. Quando terminamos a vivência e voltamos para nossa cidade, Goiânia, percebemos que estava ocorrendo diversos protestos, dos quais poderíamos cobrir para juntar cenas para o documentário.

Combinamos que eu cobriria a manifestação que ocorreria contra o aumento da tarifa do transporte público, no dia 17 de fevereiro de 2016. A manifestação começou na Praça Universitária e seguiu até o cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera. Eu estava com minha bicicleta e a câmera do do meu amigo tirando fotos e fazendo cenas de todo o ato, que correu tranquilamente. O ato foi finalizado na Estátua do Bandeirante, e ficou decidido que as pessoas subiriam até a Praça Cívica para dispersarem-se e irem em segurança para suas casas. Quando eu estava passando pelo cruzamento da rua 3 com a Av. Goiás, encontrei uma amiga que não via há muito tempo, nós nos abraçamos e ficamos conversando na esquina do cruzamento. Em um certo momento, uma das manifestantes gritou que seu celular fora roubado. Ao ouvir isso, me despedi da minha amiga, coloquei a câmera para gravar e fui ver o que estava acontecendo.

A pessoa que havia roubado o celular da manifestante havia entrado no edifício Alencastro Veiga na Rua 3. Quando cheguei na porta do edifício, perguntei a algumas pessoas o que se passava - para registrar no vídeo. O síndico, um senhor de idade simpático e prestativo, estava falando que trancaria o prédio e não deixaria que ninguém entrasse ou saísse até que a polícia estivesse ali. Com receio, alguns dos manifestantes tomaram a iniciativa de ir conversar com a polícia. Eu os acompanhei (com a câmera que estava ligada e gravando a todo o momento), os manifestantes explicaram o ocorrido aos policiais que estavam próximo dali e eles os acompanharam até a porta do prédio.

Durante o caminho, eles questionaram porque durante o ato eles pediam pelo fim da polícia militar e agora queriam a ajuda deles. Em resposta, eles tentaram explicar que não queriam o fim da polícia, tão somente o fim do modelo militar. Ao chegar na porta do edifício, os policiais alegaram que não havia crime ali e que não iriam tomar nenhuma atitude, os manifestantes que estavam na porta do prédio ficaram ensandecidos ao ouvir tal coisa dos policiais e começaram a exigir que eles fizessem seu trabalho, havia uma menina que se exaltou mais que os outros pedindo que a polícia tomasse uma atitude, um PM começou a ficar visivelmente irritado e num dado momento avançou na moça e rasgou sua blusa, deixando-a despida em pleno passeio público. Houve mais agitações e desentendimentos entre a polícia e as pessoas que estavam na porta do edifício, porém, o PM se acalmou e disse que só poderia fazer alguma coisa se eles fossem com ele registrar um boletim de ocorrência na delegacia.

A moça que teve sua blusa rasgada gritou que iria na delegacia para denunciar o policial que havia rasgado sua roupa, chamando ele de otário. Neste momento, agarraram-na e a jogaram para dentro do edifício Alencastro Veiga, os manifestantes tentaram ajudá-la, mas a polícia partiu para cima deles com sprays de pimenta e os policiais a paisana começaram a desferir golpes contra os presentes no local (em algum momento dessa confusão, o Pablo, que eu conheceria depois, pediu para que eu registrasse seu depoimento, pois havia apanhado da polícia e viu acontecer o mesmo à outras pessoas). Nesse momento, fiquei assustado e passei para a outra calçada e ao pisar na calçada um policial a paisana apontou para mim e disse “pega ele”, após isso começaram a desferir golpes contra o meu corpo.

Neste momento, corri o máximo que pude, passei para rua e comecei a correr na contramão dos carros, com medo dos socos e de ser atropelado voltei para o outro lado da calçada e subi na minha bicicleta, quando voltei a sentir mais socos e senti uma forte pancada. Cai na calçada deitado e vi a imagem de um PM com um cacete torto na ponta, ele voou na minha câmera e saiu do local com ela: ela ainda estava gravando nesse momento e o policial começou a mexer na câmera. Um outro policial me pôs de pé e pediu uma algema emprestada para deter-me. Pedi a ele que deixasse eu guardar minha bicicleta, que estava com o banco quebrado por causa da cacetada, pois, se ela ficasse ali, poderiam roubá-la. Ele disse que não se importava. Neste momento, comecei a gritar para que alguém na rua pudesse guardá-la para mim e fui algemado, quando um policial a paisana pegou minha bicicleta e começou a atirá-la ao chão com intenção de quebrá-la.

No trajeto até a viatura, expliquei ao policial que me conduzia que eu não era um manifestante e estava ali para cobrir o protesto e para fazer um documentário, expliquei que era da imprensa e tinha constitucionalmente o direito de cobrir o ato com a câmera, pois isso não era nenhum crime. Ele me disse que para ele “imprensa e merda são tudo a mesma coisa e que não se importava”. Após essas palavras, fiquei em silêncio até me porem no camburão da viatura, provavelmente fui a primeira pessoa a ser detida, fiquei ali muito tempo, vi os manifestantes voltando da praça cívica, fiquei sozinho na viatura, o policial que me levou para lá desaparecera, entrou um outro policial na viatura e olhou para trás, pela expressão em seu rosto ele não sabia ao certo o que eu estava fazendo ali. Ele ligou o carro, andou um pouco e depois estacionou, tirou-me de seu camburão e passou-me para outra viatura.

No camburão dessa viatura, haviam vários cones de trânsito, os policiais me jogaram em cima dos cones e fecharam o porta malas da viatura, fiquei ali até perto de anoitecer, quando uma policial me tirou de onde eu estava e me colocou no muro, junto com algumas pessoas que estavam com as mãos na parede levando uma revista policial. Fiquei na parede ao lado de um amigo e do diretor do Grande Hotel, ele estava voltando para sua casa no edifício Alencastro Veiga e foi detido pela polícia, pois, resolveu gravar com o seu celular o que estava acontecendo na rua (seu celular foi tomada e as filmagens foram apagadas).

Fomos conduzidos por uma van até a central de flagrantes. Chegando na delegacia, os policiais tiraram várias fotos da gente e a todo momento nos chamavam de lixo. Ficamos sentados de frente a uma parede sem poder olhar para outro lugar a não ser a parede. Eu ouvi um policial desferindo tapas no rosto de um menor que estava próximo de mim e esfregando sua orelha, perguntando porque ele não era valente naquela hora e dizendo que estava fazendo aquilo para ensiná-lo a ser valentão. Depois veio um policial com a câmera de um dos caras que estavam ali, ele queria saber onde estava o cartão de memória daquela câmera. O dono da câmera dizia que havia jogado o cartão fora e o policial ameaçava, a todo momento, levá-lo para um outro canto para forçá-lo a dizer onde estava o cartão. Perguntei, nesse momento, onde estava a minha câmera e o policial disse-me que eu poderia recuperá-la depois, na DEIC. Ficamos naquela situação até chegar os advogados da comissão de direitos humanos da OAB, com a presença deles, o comportamento dos policiais mudou completamente, não lembro exatamente em que momento chegou a viatura com o Pablo e o Wendel, que naquele momento estavam detidos por serem suspeitos de agredirem um policial à paisana -eu estava com as pessoas que foram acusadas somente de depredação e logo foram liberadas naquela noite.

Fomos ao IML fazer o exame de corpo delito, mesmo eu tendo dito que não tinha hematomas (eu e as outras pessoas fomos no camburão algemados, na mesma viatura na qual estava o cidadão que roubou o celular da manifestante, ele foi no banco de trás e sem algemas e na delegacia ele podia andar livremente). Quando voltamos do IML, os policiais conduziram-me para o lado do Pablo e do Wendel. Fiquei esperando por algum tempo, até que fui chamado pelo delegado para prestar depoimento. Tomei conhecimento que estava sendo acusado de lesão corporal grave, à uma pessoa que nunca vi, por isso fui pra carceragem da delegacia e tive de ficar ali até a audiência de custódia. Fomos recebidos muito bem pelos detentos quando fomos transferidos para a carceragem da DEIC, notei que em cada cela havia uma forca pendurada, aquilo assustou bastante a mim e ao Pablo, que estava preso comigo sob a mesma alegação. Alguns dias após eu ter saído, passando a usar uma tornozeleira eletrônica, eu e o meu amigo (dono da câmera) fomos à DEIC tentar reaver a câmera, mas não havia registros dela, informaram-nos que ela poderia estar no 1º DP, porém nós fomos neste local duas vezes e não foi encontrado registro de apreensão da câmera. Ainda não foi registrado o B.O., pois há um certo receio, quando o acusado do extravio é a própria polícia.

Raoni Frazão é estudante de Ciências Sociais na UFG.

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