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Os movimentos de rua e o “enterro” do PDS em 82

Diante da situação com a denúncia, o pedido de prisão e a posse, que houve mas não valeu, de Lula, prosseguiram os movimentos de rua, uns pró, outros contra o governo, estes acuando a presidente para forçar uma renúncia e instigando o Congresso a levar a toque de caixa o processo de “impeachment”. Numa das manifestações apareceu um caixão numa macabra alegoria com um de defunto simulando o enterro do PT.
Isto me levou a recordar um episódio ocorrido lá em São José do Duro na época de PDS e PMDB, aquele bipartidarismo criado pela Revolução de sessenta e quatro..
Os mais antigos têm um medo excomungado de praga, de castigo divino, às vezes de coisas aparentemente sem propósito, dentro daquela filosofia de que “faz mal” (embora não se saiba que mal é que faz). Cá comigo, apesar de escolado e de ter lido muito sobre tudo quanto é assunto, sou também meio velhaco nessas coisas, não confiando muito na placidez dos acontecimentos, pois acho que tudo que se faz se paga. É a lei do retorno.
Há uma crença de que a gente paga os malfeitos e paga até a língua. Isto até contei esses diinhas numa crônica aqui mesmo neste espaço. Se não acontece com a gente, paga um filho, um neto. Isto é, pagava um filho, um neto: hoje, se a gente não estiver bem grudado na sela, é a gente mesmo que cai do cavalo. Diz a crença que lá em cima, São Pedro anotava num caderno as faltas dos viventes aqui na Terra. De vez em quando, ele, folheando o velho caderno atopetado de faltas, dizia para um de seus arcanjos auxiliares:
– Menino, tá anotado aqui que Fulano fez uma falta e está em débito. Precisa pagar.
O auxiliar dava uma assuntada e respondia:
– Uai, São Pedro, ele já morreu há muito tempo, São Pedro!
O velho porteiro divino raspava a goela, coçava o queixo barbudo e dizia sentencioso:
– Então, bota o filho dele pra pagar!
Às vezes, na falta do filho, um neto pagava.
Depois, São Pedro ficando velho e esquecido, resolveu desburocratizar o Céu. E incumbiu São Benedito da tarefa. Mas o santo preto, analfabeto, e com receio de ser traído pela memória que já não divulgava mais as coisas com facilidade, tomou uma providência: malmente o pecador comete a falta, ele já vai botando pra pagar. Daí, a gente hoje pagar tudo o que faz. A demora é só São Benedito tomar conhecimento. Às vezes demora um pouco, porque o volume de faltas no mundo e a escassez de informantes do santo levam uma certa morosidade ao progresso. Mas, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, paga.
Pois bem, acho que existe um certo fundamento nesta história de se pagar o que se faz. É evidente que São Pedro e São Benedito são apenas para ilustrar. Mas que paga, isso paga!
Na campanha eleitoral goiana de 82 lá em Dianópolis, que foi marcada por grande movimentação e um falatório descomedido, a oposição, há quase vinte anos querendo ver chegar a sua vez, fez promessas e mais promessas para conseguir sua ascensão, tida como certa. Já no apurar das primeiras urnas, a euforia tomou conta do povo, aglomerado no pátio do Colégio João d'Abreu, em cujo auditório se realizavam os trabalhos de apuração. A cada resultado parcial, a gritaria explodia. E no final, lá para o descambar da madrugada, a cidade foi sacudida por longa bateria de fogos de artifício. Mas foi uma comemoração limpa, sem afrontas e desforço físico, murchando as promessas de desaforo de alguns, pois o prefeito eleito, Oliveira, os chefes políticos (Zeca Póvoa, Hagahús e outros) e o juiz eleitoral, o prudente dr. Joaquim Leite da Silva (mandado decretado pelo TRE goiano) recomendaram prudência, para não vilipendiar o ferido PDS. O juiz vicário (que, por sinal, é sogro do dr. Dioran Jacobina, da 2ª Vara Cível de Goiânia) era só conciliação e deixou um nome bem respeitado na comunidade, admirado por gregos e troianos, pois os repentes de raiva esbarravam na calma e na voz mansa e pacienciosa do dr. Joaquim.
Mas parece que o diabo atenta, e no dia seguinte, o povo viu passar nas principais ruas um cortejo: um grupo de enraizados peemedebistas inventou de fazer o “enterro do PDS”, encomendando um caixão de defunto e reunindo um bando de carpideiras para fazer uma lamentação, ironizando a derrota do rival.
Muita gente se benzeu, antevendo naquilo uma afronta, por usar um caixão, coisa que pertence lá ao reino do respeito aos mortos. E zanzaram com esse caixão, conduzindo uns bêbados, acabando a farra na praça Getúlio Vargas, em frente à residência de Maria Póvoa, minha prima, talvez a mais radical pedessista, apesar de ter sido seu filho, Tony, um dos baluartes da campanha do PMDB; o marido, Rui, também do PMDB, e o filho Alemiro, eleito vereador também da oposição. Ali na porta de Maria, eles quebraram o caixão, ante a revolta de muitos e a gozação de outros.
Alguns dias depois, Tony, um rapaz inteligentíssimo e cheio de futuro, falece num acidente de carro. A superstição do povo ligou o fato a um possível castigo pelo macabro desfile, não por ter ele acompanhado o “enterro” (pois nem lá ele estava), mas porque o caixão fora esfacelado à porta de sua mãe e pelo fato de ter sido ele um dos pilares da campanha. Poucos dias depois, vitimado por um mal (dizem que foi pinga), morre Pedrito Coxé, um barbeiro que abandonou a profissão para andar gozando tudo e todos, e foi ele um dos que fizerem o papel de defunto no caixão. Aí, o povo acreditou em castigo.
Dias depois, estava eu na casa de mãe, quando entra Amália, filha de Brás Cardoso, ali da Santa Maria, arrecadando dinheiro para mandar o irmão, Pedro, genro de Maria Facão, para Brasília, pois fora acometido de um mal estranho, que o fizera ficar vendo coisas e às vezes acordando assombrado, dizendo que estava vendo Pedrito. Acabou ficando meio zoró, com a cabeça fraca, requerendo cuidados médicos fora de lá, com eletroencefalograma e tudo. No Hospital São Vicente de Paulo, ele vivia rebuçado numa coberta, tremendo de medo. E viajou com seus estranhos sintomas para Brasília. Nem sei em que resultou.
Pedro fora o outro “defunto” do caixão do “enterro do PDS”.
Com isto, os outros acompanhantes do funeral trataram de ir embora lá do Duro, com as barbas de molho. E eu, sem querer mal pra ninguém, fico só assuntando as coisas.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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