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OPINIÃO

Páscoa num mundo em desordem

“O mundo está em absoluta desordem!”, nos sentimos impelidos a expressar enquanto sopram os ventos e caem ao nosso redor os raios de uma tempestade de mudanças. No entanto, essa tempestade nunca vai amainar, pois nasce de conflitos internos numa civilizaç

“O mundo está em absoluta desordem!”, nos sentimos impelidos a expressar enquanto sopram os ventos e caem ao nosso redor os raios de uma tempestade de mudanças. No entanto, essa tempestade nunca vai amainar, pois nasce de conflitos internos numa civilização em luta contra si mesma. O que seria, então, a ordem?
O gesto – por exemplo – do hérulo Odoacro, em 4 de setembro de 476, enrolando as insígnias do império romano e as remetendo para Zenão, em Bizâncio, foi o emblema de um caos muito maior e de efeitos muito mais prolongados do que teríamos hoje se, subitamente, deixassem de existir a comunidade européia e os EUA. O cristianismo, ele mesmo, não foi uma tempestade sobre o mundo antigo?
O desenvolvimento da civilização acelerou drasticamente o processo de mudanças, encurtando tempos e distâncias. “E no entanto se move!”, teria insistido Galileu anunciando que a Terra não era o umbigo do universo. “Preferia ter nascido relojoeiro!”, desabafava Einstein ao perceber que a Teoria da Relatividade (reduzindo a amplitude da física newtoniana) era abusada pelos profetas do relativismo, convencidos de que com o desaparecimento das linhas e ângulos retos também sumiam as noções de verdadeiro e de falso.
Hoje, a “carta a Garcia” é lida on line. Satélites, a milhares de quilômetros de altura, são capazes de esquadrinhar polegadas de solo e metros de subsolo do planeta. Qualquer pessoa ligada por computador à Internet tem acesso a um volume de informações muito superior à que detinha, há dez anos, o mais bem informado chefe de Estado (a CIA sabia tudo sobre a União Soviética menos que ela estava acabando). O ritmo do progresso deslocou-se do compasso que lhe podiam cadenciar as atividades humanas para zumbir à cadência de máquinas cada vez mais velozes. A política - a velha política, a milenar ciência de governar os povos - parece se encaminhar para uma crise de conteúdo com a crise de conteúdo do Estado e do governo.
O último século assistiu o fim de impérios que se estendiam por continentes e sobre cuja totalidade territorial “o sol nunca se punha”. Nas últimas décadas se articularam, desarticularam e rearticularam dezenas de estados nacionais. Hoje se diluem os efeitos das fronteiras entre os países, de tal forma que, dentro delas e por sobre elas, se expande toda uma imensa gama de organizações que constroem unidades e interesses comuns às vezes mais fortes do que os proporcionados pelos estados nacionais. Servem e continuarão servindo para isso os fluxos migratórios, as grandes corporações empresariais, os blocos comerciais. E se valem disso ensandecidos radicalismos político-religiosos. Mas é sobretudo a instantaneidade da informação que contribui para que se desbordem fronteiras.
No rodar das primeiras folhinhas do terceiro milênio da era cristã, a criatura humana, assistida por máquinas fantásticas, pode refletir sobre tudo isso e pode empenhar sua inteligência na solução dos mais intrincados problemas práticos. Mas continua se considerando uma casca de noz, periclitante no mar da vida, sob a tempestade causada por velocíssimas mudanças no mundo que a rodeia e no seus abismos interiores. Neles, ainda sente a mesma necessidade de amar, de construir, de se arraigar e de se relacionar com os outros, consigo mesmo, com a natureza e com Deus, experimentada por seus avós e pelos avós de seus avós. Ainda acorda, a cada manhã, com aquele mesmo e ancestral desejo de encontrar a felicidade e de dar um sentido à sua existência.
O seu mistério, o mistério do homem, continua só tendo resposta “no mistério do Verbo encarnado”. E o seu bem, o seu valor e a sua felicidade só em Jesus Cristo encontram referências seguras e suficientes – aquela “ordem” – sem as quais afunda, como casca de noz, na tempestade das mudanças e no turbilhão de suas voragens. Tudo muda, tudo passa, mas as palavras dele não passarão, seja no terceiro milênio, seja nos milênios que se seguirão. Por quê? Porque com ele tocamos a eternidade, vivemos o “mistério do Verbo ressuscitado”. Feliz Páscoa, amigos leitores!

(Percival Puggina, membro da Academia Rio-Grandense de Letras, arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+)