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OPINIÃO

Uma sociedade corrupta que finge ser contra a corrupção

O atual momento pelo qual o Brasil atravessa talvez pudesse ser definido com uma única palavra: desalento. Há uma desesperança a tomar conta da alma brasileira, trazida pela forma como a grande maioria da sociedade se manifesta, e, principalmente, pelos motivos que a impulsionam a manifestar-se. A elite brasileira não se manifesta contra a corrupção, por uma razão evidente: ela não é contra a corrupção, pois isso seria ser contra a sua própria estrutura a dar-lhe suporte e sustentação. As manifestações, ainda que epitetadas de “contra a corrupção”, em verdade são uma reafirmação da corrupção como essencial e necessária à sua sobrevivência.
Em um momento de preocupante conturbação, ocasionada pela falência absoluta do nosso sistema político – o que é, lamentavelmente, o reflexo da estrutura e da mentalidade social brasileira – deparamos com manifestações sociais que apequenam o debate e não condizem com o tamanho da responsabilidade que todos nós deveríamos assumir neste momento onde os cidadãos assumiriam protagonismo social tão relevante. Ao contrário disso, vemos a sociedade dividida e impelida por paixões frátricas que em nada contribuem para uma saída para o conturbado momento da vida política e social que atravessamos. Por óbvio, o atual momento não se trata de uma crise que tenha surgido de repente. A instabilidade pela qual estamos passando é consequência de uma crise que antecede ao atual momento. A sociedade brasileira padece, desde o início de sua origem, e uma crise de mentalidade, de valores. As mazelas do sistema político, orgânica e estruturalmente falido, é o reflexo dessa crise na base estrutural de nossa sociedade. Não existe nenhum sinal de que haverá alguma reação que ajudará na mudança estrutural, som o surgimento de novos paradigmas. Surpreendentemente, as manifestações desencadeadas nos últimos anos, acirrando-se mais recentemente, não são em razão de um sentimento social que clama por mudanças ou por rompimento com um modelo político nefasto. A grande maioria dos manifestantes é impulsionada pelo desejo de que tudo permaneça exatamente como está. As pessoas agem de forma dissimulada quando dizem que protestam contra a corrupção. Não é verdade, pois a sociedade brasileira é organicamente corrupta e não existe o menor sinal de que esteja disposta a reavaliar os seus conceitos. Talvez, para muitos, o momento de conturbação político-social que estamos presenciando seja inédito. Isso decorre do desconhecimento da história do Brasil e da crônica deficiência de memória do povo brasileiro, com isso, convertido em idiota funcional da classe política. O atual momento, em verdade, é a repetição de um velho roteiro, com os mesmos atores, a mesma trama. Estamos repetindo, com todos os ingredientes, o contexto político e social do golpe de 1964. É a história, como evento cíclico, se repetindo. É a sociedade brasileira demonstrando que se distancia dos antepassados somente no aspecto cronológico. A mentalidade, a cultura, a índole, é a mesma de um passado que, imaginava-se, não se repetiria. O presente é um museu de grandes novidades. As palavras de ordem entoadas nas manifestações parecem um filme remasterizado. As pessoas parecem zumbis que permaneceram em sono profundo por um período de uns cinquenta anos e que, de repente, acordaram passando a marchar repetindo frases de 1964, muitas delas, evidentemente, anacrônicas e descontextualizadas, como as que dizem “fora comunismo”, “O Brasil não será uma Cuba”, etc. Outras, embora também tivessem sido o mote no período 1964, como a marcha dos “cristãos pela família e contra o comunismo”, sendo a repetição da “Marcha da família com Deus”, parecem bem atuais, em razão do aprofundamento do obscurantismo sectário que avança, vertiginosamente, no Brasil, impregnando-se, principalmente, nos poderes legislativos.
Os golpistas de 1964 acusaram o presidente João Goulart de ser “comunista”, por ter visitado a China, em busca de acordos comerciais, visado aquele enorme potencial mercado consumidor. O pretexto de “combater a corrupção” também foi utilizado, acusando-o de ser corrupto. O que nunca fora comprovado. Todo o enredo de 1964 se repete, nos dias de hoje, e a nossa sociedade demonstra que só evoluiu e aperfeiçoou no quesito hipocrisia. Soa no mínimo ridículo ver essa elite que se nutre da corrupção e da exploração das classes sociais mais pobres ostentando faixas e cartazes se dizendo “contra a corrupção”, defendendo e exigindo a deposição de uma presidente legitimamente eleita e contra a qual não existe nenhum caso de comprovado ato de corrupção, nem mesmo investigação formal. Por seu turno, ao bradarem contra o governo, acusando-o de corrupto, esse mesmo segmento social se alia ao que há de mais sórdido na classe política, não demonstrando o mínimo incômodo em confirmar no poder, ditando os rumos da nação, os políticos comprovadamente corruptos, representantes do retrocesso moral, civilizatório e político, tradicionais saqueadores das riquezas do país, aviltadores dos valores éticos que deveriam nortear a sociedade brasileira.
Na verdade, estamos diante, mais uma vez, de uma reação virulenta provocada pelo atávico ódio de classe. As manifestações contra o governo não são decorrentes da indignação social contra a corrupção. É uma reação misantrópica de uma elite social contra as políticas inclusivas implementadas, com a valorização do poder de compras do salário mínimo, da distribuição de renda mínima, como o Bolsa Família, o sistema de facilitação de acesso ao ensino superior pelas camadas tradicionalmente alijadas, como o Prouni, Ciência Sem Fronteira, o sistema de cotas, etc. essas políticas inclusivas evidentemente, resulta na valorização da mão-de-obra, na qualificação profissional e, com isso, diminui o exército de famintos e, consequentemente, coíbe a exploração salarial, como era comum em relação às empregadas domésticas e aos operários da construção civil. Essa mudança social despertou um ódio mortal no seguimento elitizado da sociedade brasileira, recrudescendo com medidas assistenciais como o programa Mais Médicos, que leva atendimento e assistência médica mais humanizada à população esquecida nos rincões brasileiros. É preciso enfatizar que o programa Mais Médicos, contratou médicos de diversos países como Argentina, Colômbia, Portugal, Espanha, Cuba. Entretanto, somente estes últimos, os cubanos, é que foram alvo do ódio feroz, por uma razão bem óbvia: são negros. Isso impactou a classe médica brasileira, desacostumada a ter, dentre os seus colegas vestidos de branco, pessoas negras, nas mesmas condições de igualdade social e profissional.
As manifestações, repletas de discursos odiosos, de pessoas cegas e ensandecidas pelo preconceito social, causam nos brasileiros que verdadeiramente desejam a construção de uma pátria alicerçada nos pilares humanos, com justiça social e fundamentos nos valores de uma Ética Maior, um sentimento de desalento. O ódio reacionário funciona como uma forma de reafirmar a preocupação da elite social brasileira em eleger uma moral seletiva, na qual ela não se constrange em admitir-se corrupta e corruptora, mas que não tolera qualquer possibilidade de romper ou diminuir o fosso abissal que separa as classes sociais. Essa elite, portanto, não se insurge contra a corrupção. Ela se insurge contra a possibilidade de acabar-se com a corrupção, afetando o seu tradicional modus vivendi. O discurso através do qual os movimentos esbravejam ser “contra a corrupção’ funciona como mera retórica falaciosa dirigida a camuflar os reais desideratos de uma sociedade preconceituosa, fascista e intolerante, ávida a redirecionar ao comando absoluto do país os “seus corruptos”, que se empenharam em aprofundar as diferenças sociais, aumentando o número de indigentes, material e cultural, que servirão como mão-de-obra a ser explorada no sustento dos privilégios de uma elite sádica, corrupta e hipócrita.

(Manoel L. Bezerra Rocha é advogado criminalista – [email protected])

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