Segundo a ciência, o ser humano não possui as funções psíquicas ou biológicas para mentir como se fosse um fenômeno natural. Ao fazê-lo, apresenta reações visivelmente detectáveis, como bem o sabem os psicólogos. Mecanismos da tecnologia eletrônica, como os polígrafos, comumente conhecidos como “detectores de mentiras’, só foram possíveis em razão de o próprio corpo naturalmente reagir diante de uma mentira.
Desde que se intensificaram as manifestações contra a presidente Dilma Rousseff, recrudescendo para manifestações de ódio e a sabotagem do exercício regular do seu mandato, já era possível perceber nas atitudes, nos discursos e nas palavras de ordem dos manifestantes que tudo não passava de uma grande dissimulação que culminou em um deplorável cinismo público. É evidente que nunca protestaram contra a corrupção e não apenas pelo fato de a presidente reeleita não ter contra ela nenhuma suspeita de conduta criminosa, mas, principalmente, em razão de os manifestantes pró-impeachment estarem alinhados ou manipulados por uma sórdida pandilha composta pelo que há de mais nauseante em matéria de bandidos encastelados. Além disso, não apenas a classe política moralmente deteriorada, mas os representantes das classes sociais mais elitizadas, e que tomaram frente nas manifestações a favor golpe, estão arraigados em uma cultura e em um estilo de vida eminente e preponderantemente corrupto. É dizer: a corrupção, associada ao ódio de classe, consequência de uma abissal estratificação social, é a base de sustentação dessa elite delinquente, espoliadora e cínica.
Essa elite, quando questionada se não lhe pareceria paradoxal alegar que exigem a deposição de uma presidente legitimamente eleita e presumidamente honesta, responde que se trata de uma assepsia por “etapa”. Primeiro, depõe-se a presidente, depois o vice, em seguida o presidente da Câmara dos Deputados e, por último, o presidente do Senado. Nada mais cínico, mentiroso e hipócrita. A verdade, repita-se, é que essa elite brasileira, tanto cínica quanto iletrada, é historicamente corrupta e, por óbvio, tem dentre seus representantes políticos os adidos essa cultura corrupta. Isso se ressai de forma inequívoca pelas demonstrações públicas de admiração e idolatria às figuras mais sórdidas da política, como o presidente da Câmara dos Deputados e a grande maioria dos parlamentares que integraram a Comissão e dos que votaram a favor do impeachment. Um bando de delinquentes, cujos crimes são comprovados e amplamente do conhecimento público.
Mas, apesar de tudo isso, há que se tentar manter o disfarce. Essa elite e seus representantes inescrupulosos não se sentem confortáveis em se revelarem de maneira tão desnudada. Não dá para assumir publicamente as suas canalhices. Afinal, é necessário preservar o discurso moralista, contra a corrupção, contra a criminalidade, pois a defesa do rigor punitivo penal, contra a classe pobre, com toda a sua engenhosa estrutura do sistema de justiça (ou de justiçamento) é extremamente útil e lucrativo à essa elite. Portanto, é preciso adotar-se mecanismos ludibriadores da opinião pública e, para tanto, o cinismo, a dissimulação, a delinquência dessa social posicionada na cadeia de comando e na tomada de decisões de amplo alcance, os detentores do poder político e do poder real, precisam valer-se de eufemismos ou neologismos para seus atos imorais e criminosos. Desta forma, o roubo passa a ser “atos de irregularidades”, “desvio de função ou de finalidade”, “improbidade”, etc. O sonegador, o empresário que se apropria dos encargos sociais dos trabalhadores, o latifundiário ou pecuarista que depena os bancos públicos, todos os bandidos autores de crimes de altíssima lesividade social são eufemisticamente chamados de “inadimplentes”. Outros, os mais cínicos, se autointitulam “vítimas” de uma “crise financeira” ou da “variação cambial”.
É exatamente em razão do reflexo dessa hipocrisia que algumas verdades não podem e não devem ser tornadas públicas em toda a sua crueza. O golpe contra a presidente da República não pode ser chamado de golpe, mas de impeachment. Afinal, ele está previsto da Constituição. Portanto, é “democrático”. Não informam, todavia, que democrático é o devido processo legal que se origina de um crime ou um fato juridicamente relevante, em estrita observância do princípio da reserva legal e que a conduta do processado esteja em consonância com a descrição do tipo, através de um processo legítimo e idôneo. Não deixa de ser tirano e ilegítimo atribuir, por exemplo, a autoria de um homicídio a alguém, sabendo-se inocente, sem um processo legítimo, sem provas idôneas e juízes probos, apenas pelo fato de o crime estar previsto na lei e na Constituição. Os instrumentos processuais legais também podem ser manejados para fins espúrios, servindo aos interesses de caprichos pessoais – próprios ou de terceiros.
Essas são as verdades que os mentirosos tentam ocultar. Por isso, quando não conseguiram impedir que o golpe fosse chamado de golpe, em razão da escancarada obviedade, passaram a defender a renúncia da presidente, “pelo bem do Brasil e a retomada dos investimentos”. Também por esta razão empenham-se em tentar impedir que as perfídias mefistofélicas e as tramas golpistas levadas adiante por uma corja de criminosos sejam denunciadas e levadas ao conhecimento da comunidade internacional, em uma vã tentativa de evitarem um vexame além das fronteiras. Segundo as declarações do vice-presidente, seria um “vexame internacional extremamente desconfortável”. Os moralmente falidos, ao que parece, ainda são capazes de ensaiarem alguma demonstração de rubor. Ainda que seja apenas para estrangeiro ver.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])