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OPINIÃO

Palpite infeliz de um ex-ministro

O apóstolo Paulo, que foi fariseu e doutor da Lei, dizia que a “letra mata, só o espírito vivifica”. É o mais ousado princípio de hermeutica jurídica já enunciado. Daí surgiu a autorização, legítima, ao intérprete da lei buscar, pelas vias lógicas, a intenção do legislador por trás da fria redação da lei. Na busca dessa ratio legis, o intérprete há de confrontar dispositivo sob interpretação com todo o sistema legal. Entre o rumo inicialmente traçado pelo dispositivo, identificado pela pressa do intérprete imprudente, e as determinações do sistema, deve-se preferir o sistema. Pois no sistema está o justo. No sistema o espírito da lei se revela em sua inteireza.

Nos dias de hoje, os reacionários se aferram à letra fria da lei para justificar como “legal” o golpe em curso contra Dilma Roussef. Neste momento, nada melhor do que a voz prestigiosa de uma “autoridade”, de uma sumidade qualquer do direito, para dar respeitabilidade ao que, afinal, não passa de uma manobra usurpadora. O ex-ministro Sydney Sanches, em entrevista à Agência Brasil, final da semana passada, pontifica sobre a legalidade do impeachment. Não basta ser “autoridade” no assunto, não basta possuir notório saber jurídico e reputação ilibada. É preciso persuadir. Ninguém, a não ser os tolos e os desinformados, precisa formar sua convicção sobre o assunto com base no que disse Sanches. É preciso examinar os argumentos dele.

Para quem foi ministro do Supremo Tribunal Federal, os argumentos do ex-ministro são bem chinfrins. Ele tenta demonstrar a legalidade do golpe por meio de uma exegese prosaica da legislação pertinente. Tanta trivialidade já seria censurável, por si só, em um primeiranista de Direito. Em se tratando de um ex-ministro, é imperdoável. Para os inteligentes seria ocioso avisar, mas aos energúmenos de sempre esclareço que, aqui, ataco argumentos, não a pessoa. A pessoa do ex-ministro, que reputo homem de bem, não está em discussão.

Antes, porém, situemos a pessoa e os fatos. Em 1992, quando o processo de impeachment do ex-presidente da República Fernando Collor de Mello foi julgado, Sydney Sanches era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e teve como missão presidir o julgamento do presidente impedido. Para ele, o processo atual tem embasamento jurídico e não se trata de um golpe. “De forma alguma. É tudo dentro da Constituição”, afirmou. Segundo ele, houve um crime de responsabilidade, que está previsto na lei do impeachment. “A meu ver, há um crime chamado de crime de responsabilidade que é um ato incompatível com a integridade, a honra ou com o decoro no exercício do cargo. Isso está previsto na lei do impeachment.”

Uma coisa é a existência, no texto constitucional, do instituto do Impeachment. Ali o instituto é uma norma genérica, abstrata e preexistente aos fatos. A primeira coisa a saber é: até aonde os fatos, conhecidos e provados, se adequam ao tipo legal? Esta é uma questão. É o que chamamos de questão de mérito. Não é aí que reside o carater golpista do atual processo de impeachment, se bem que, também aí se agasalham intenções usurpadoras.

A outra questão – questão que Sanches não aborda e da qual passa longe, anos-luz de lonjura – é a de ordem processual. Todo mundo está pensando que Dilma está sendo submetida a um julgamento justo. Não está. O atual processo é meramente uma cerimônia para justificar e legitimar um ato de deposição da presidente. Deposição que foi decidida lá atrás. Antes de o julgamento ter sido iniciado, a sentença já estava lavrada. Tudo que foi feito até aqui são atos nulos à luz dos preceitos constitucionais que regem o processo penal, seja quem for o réu. Dilma não está submetida ao chamado “devido processo legal”. E o esbulho de seus direitos é justificado por uma doutrina espúria, a do “julgamento político”, um conceito extralegal fundado em falácias facilmente refutáveis.

Abobrinhas jurídicas

Sydney Sanches acha que há um crime de crime de responsabilidade, “que é”, afirma, “um ato incompatível com a integridade, a honra ou com o decoro no exercício do cargo”. Isso está previsto na lei do impeachment. A Constituição estabelece quais são os crimes de responsabilidade e, no final, atribui à lei a função de discriminar cada um desses crimes. E um deles é a falta de decoro no exercício do mandato.

Aqui o ex-ministro começa a falar bobagens. A constituição não define crimes de responsabilidade. É a lei ordinária que define tais crimes. O que temos na Constituição é o conceito de Crime de Responsabilidade. Conceito é uma coisa, definição é outra, sabem os que estudaram lógica. Proposições categóricas contidas na constituição, tais como “ato incompatível com a integridade, a honra, ou com o decoro no exercício do cargo”, põem o valor a ser tutelado pela lei. O preceito é dirigido ao legislador ordinário, que o toma como diretriz para a elaboração da lei. Assim, não é o caso de se especular o que seria “honra”, “decoro”. O legislador toma tais conceitos subjetivos para, ao elaborar o tipo penal, objetivá-lo na lei. A questão fundamental é se os atos imputados a Dilma se enquadram em algum dos tipos elencados na Lei que define os crimes de responsabilidade e estabelece normas procedimentais para o seu julgamento.

“E não deixa de ser uma dessas figuras porque, ao final das contas, aquilo foi uma manobra para aparentar uma situação fiscal e financeira e orçamentária do país que não era real”, diz o ex-ministro. O que está em jogo é saber se tal manobra está tipificada como crime de responsabilidade. O resto é sofisma.

Dilma foi acusada de praticar “pedaladas fiscais”, nos termos do relatório de Jovair Arantes. Tais “pedaladas” consiste em o governo realizar operações de crédito com bancos oficiais. Isto não passou a ser crime de responsabilidade recentemente, quando a Lei 1079/1950, foi emendada em 2000. A lei fala em várias modalidades de operações de crédito. Não fala em pagamentos com atrasos de dívidas ou repasses. Foi o Tribunal de Contas da União que fixou o entendimento segundo o qual o atraso presume operação de crédito. O TCU, ao fixar este entendimento, inovou, criou lei nova.

Ocorre que o TCU não é órgão legislativo nem judiciário. O TCU nem sequer julga contas: Ele as examina e emite parecer pela sua aprovação ou rejeição. Cabe ao legislativo aprovar ou rejeitar as contas examinadas, não estando, de qualquer modo, vinculado ao parecer do TCU.

O TCU presumiu onde não cabia presunção. O intérprete não pode dizer mais do que diz a lei. A interpretação extensíssima do TCU não pode se aplicar a um processo criminal, onde a interpretação tem ser obrigatoriamente restritiva, exceto se para beneficiar o réu. Não pode o TCU discriminar onde a lei não discrimina. Isto é hermeutica jurídica elementar. Operações de crédito são atos formais, que exigem a forma escrita, sendo a forma da substância do ato. Jovair assinou um relatório, que escreveram para ele, com mais de 100 laudas de abobrinhas, comprando por lebre o gato empacotado pelo TCU.

O essencial é que os atos praticados por Dilma não são os que a Lei de Responsabilidade tipifica. Mas toda esta discussão teria sentido se Dilma fosse submetida a um julgamento justo, onde a lei seria aplicada de forma correta, sem subordinação aos vulgares interesses político-partidários dos que querem chegar ao poder sem voto.

O linchamento legal

Ouçamos ainda o ex-ministro: “Mas não podemos nos esquecer que, mesmo que houvesse alguma polêmica entre juristas, quem vai resolver é o Senado. E não vai resolver juridicamente, mas vai resolver politicamente porque ele é político, integrado por políticos e necessariamente político porque são vinculados a partidos. O julgamento, embora haja uma denúncia apontando fatos que impedem e correspondam a um crime de responsabilidade, se o fato ocorreu ou não, quem vai examinar é o Senado”, diz o doutor Sanches (os grifos são meus).

Espantoso para alguém que já foi ministro de um tribunal que se diz “de Justiça! Não posso sequer chamar esta doutrina de “dogmática”. Para chegar a dogmática Sanches teria que revê-la em todos os seus pontos. Essas frases aí de cima não são de um jurista, de um batalhador do Direito. Nada mais são do que um amontado de lugares comuns, de chavões que andam pelas bocas de qualquer politiqueiro ignorante. Ou que acredita que as fontes formais e materiais do Direito são suas conveniências pessoais. Quando um ex-ministro do STF se expressa como vimos, nenhum valor tem suas palavras para o sábio. É tudo doxa.

Com base nos princípios que informam o nosso sistema legal, mormente na esfera penal, temos por axiomático que nenhuma pena pode ser imposta a um réu sem um julgamento justo, não importa quem seja o juiz. No caso de Dilma, seu juiz será o Senado. Para julgar segundo os ditames da Justiça, o Senado terá que examinar o fato à luz do direito, e exarar veredito. O julgamento, portanto, terá que ser jurídico.

Um tribunal parcial

Quando Sanches diz que o Senado vai resolver “politicamente”, quer dizer que não “vai resolver juridicamente”. Ou seja, teremos um julgamento que é, na verdade, um anti-julgamento, uma farsa processual, a mais completa negação daquilo que entendemos por “julgamento justo”.

Julgamento político é sofisma ideológico, não é categoria jurídica. Tal expressão não está em parte alguma das leis. É conceito espúrio desenvolvido por juristas dogmáticos ou a serviço da reação política. O único julgamento político justo é o do eleitor nas urnas. Ele julga o político através do voto, que é secreto. Ao reeleger Dilma, o povo a julgou politicamente, absolvendo-a de acusações que vinham antes mesmo das eleições. Que legitimidade tem o Congresso para julgar “politicamente” um presidente? Nem legitimidade legal, nem, como e o caso atual, moral.

O tribunal parcial

O Senado, ao se reunir em sessão extraordinária para julgar o presidente da República, funciona como conselho de sentença. É um órgão análogo, pela excepcionalidade das circunstâncias, a um corpo de jurados. Está, portanto, sujeito às mesmas regras aplicáveis ao corpo de jurados.

Manda a Lei dos Crimes responsabilidade que, no julgamento pelo Senado, se apliquem subsidiariamente as regras do Código de Processo Penal. Tanto os regimentos da Câmara dos Deputados como o do Senado não dispõem de modo contrário, limitam-se a repetir as normas contidas na Lei dos Crimes de Responsabilidade.

Isto quer dizer, indo diretamente ao ponto, que os juízes devem ser imparciais, não ter interesse na causa, o que por si só já desqualifica o julgamento como “político”. O voto terá que ser secreto. Os juízes terão que se dar por impedidos se fizerem prejulgamento. E o que estamos vendo: Os juízes de Dilma já antecipando veredito. Seus inimigos declarados contando os dias para vê-la condenada. Um julgamento justo pressupõe a possibilidade de absolvição do réu. Mas, no caso presente, a ré já foi condenada. Os vereditos já foram em sua maioria antecipados. Praticamente todos os senadores, inclusive os petistas, deveriam ser impedidos, e convocados os seus suplentes.

O vice Michel Temer, sem um pingo decoro, já atua como se presidente fosse, compondo seu ministério. É a esta movimentação licenciosa, onde ninguém mais se preocupa em sequer salvar as aparências, que Sydey Sanches chama de “julgamento político”. Que seja. Neste caso, o conceito de “julgamento político” está em irreconciliável conflito com o conceito de Justiça. Sendo que a Justiça, pelo Preâmbulo da Carta Magna, é um dos valores que regem a República, tem-se por lógico que tudo que se fez até agora é injusto e anticonstitucional.

Uma vez que o instituto do impeachment tem sido conspurcado, não há necessidade de uma acusação séria para instaurá-lo. Qualquer argumento do lobo serve. Instaurado o procedimento, ganha quem tem maioria. O PMDB rompeu com Dilma, deixando-a em minoria. O PMDB de Cunha e Temer promoveram o processo de Impeachment. Eles deram a maioria de que uma oposição insurrecta necessitava para derrubar uma presidente cuja legítima vitória eleitoral jamais aceitou. O PMDB promoveu o impeachment para usurpar a presidência da República. O nome disso é golpe de estado. Se há criminosos nesta história eles se chamam Michel Temer e Eduardo Cunha, e seus cumplices são todos os que votaram e votarão pelo impeachment e pela condenação da presidente.

Sanches ainda se alonga em outras considerações. Admite, por exemplo, que a presidente por ter agido sem dolo. Ora, o dolo é elemento subjetivo do tipo penal. Se não há dolo, não há crime, a não ser nos casos em que a lei penal admite a forma culposa, que não é o caso. Também comenta as diferenças entre a conjuntura atual e aquela em Collor de Mello foi impedido. Mas isso não vem ao caso.

(Helvécio Cardoso, jornalista)

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