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OPINIÃO

A república de Brasília

Meu primo, estes diinhas, fui convidado para um evento em Brasília, patrocinado pelo governo de Rondônia, promissor Estado governado pelo meu conterrâneo Confúcio Moura, que levou, juntamente com seu irmão, Nobel Moura, a voz de Dianópolis, mostrando que

Meu primo, estes diinhas, fui convidado para um evento em Brasília, patrocinado pelo governo de Rondônia, promissor Estado governado pelo meu conterrâneo Confúcio Moura, que levou, juntamente com seu irmão, Nobel Moura, a voz de Dianópolis, mostrando que nossa terra produz coisa boa: Confúcio imprimiu muito progresso àquele Estado.

O convite para o evento veio pelo meu primo Elson e pelo também conterrâneo Antônio Bomfim, filho de Jairo Teles, lá do Rio da Conceição, a seis léguas do Duro. E como fazia um bando de tempo que não via Confúcio e Elson, desmarquei algum compromisso aqui e, no afinco de rever os amigos, ganhei estrada e fui lá.

Imaginei que a governadoria tinha mudado Confúcio, mas ele, quando me viu, abandonou a comitiva que o acompanhava e até uns embaixadores que tinham ido lá pra ver as potencialidades rondonianas, e veio, cheio de gestos largos me trazer aquele abraço que estávamos nos devendo há anos. Desprezou as grandorias e separou um tempo para rememorarmos nossa época dianopolina. Falamos do seu mano Antônio Nobel, que hoje é anestesista em Ariquemes, e a conversa descambou para o que era permitido pelo escasso tempo. E notei que Confúcio continuava bonachão, sorridente como o seu pai, Zeferino Moura, folclórico e respeitado delegado calça-curta lá no Duro, que deitou fama pelo seu vozeirão que carreava respeito ao cargo.

Confúcio, como eu, Tonho Bomfim e outros frosteiros na cidade grande, saiu lá da terrinha pra cá, atrás de emprego e instrução. E começou de baixo, tanto quanto seu irmão, Antônio Nobel, que a política rebatizou de Nobel Moura. Aqui, Confúcio virou médico  pela Universidade Federal de Goiás, passou pela Polícia Militar, onde foi oficial médico; mas sua natureza reclamava maiores saltos e, junto com seu irmão, esguaritou para o novo Estado e entrou na política rondoniense, elegendo-se deputado federal  por três vezes consecutivas; depois, foi eleito prefeito de Ariquemes, renunciando ao mandato de deputado e deixando um nomezinho a respeitar, pois, mercê de seus próprios méritos, reelegeu-se prefeito em 2008. Em 2010 foi eleito governador do Estado, reeleito em 2014, após enfrentar os adversários, que teimavam em botar um pau na sua estrada política para cassar-lhe o mandato. Mas Confúcio venceu a briga.

Quando me encontrei com Bomfim, um fanisco de memória, que estava dormindo nas funduras do tempo, me cutucou e lembrei-me de que, lá pelo início dos anos setenta, ele, recém-“formado” no Ginásio João d´Abreu, butucou em Brasília, onde eu morava, e, como eu trabalhava no MEC, ele queria um encosto num empreguinho para se sustentar. E eu tinha uma chefiazinha no Serviço de Transportes do ministério, e logo tratei de arranjar um carguinho burocrático, pois competência ele tinha de sobra: como estudante, era um gênio, pois, talqualmente Antônio Nobel, estava sempre entre os primeiros lugares da turma. E Bomfim tornou-se popular no MEC, pois sempre estava solícito atendendo a quem dele precisasse. Depois, formou-se engenheiro e organizou todo o Detran de Brasília, num memorável trabalho. Deixou de ser “Tonho de Jairo” e virou “dr. Antônio Bomfim”.

Dinheiro escasso, e precisão demais, fomos morar numa bagunçada república na W-3, improvisada pelos donos, Acir do coronel Afonso Carvalho e Wagner Pinheiro, amontoados em dois quartos, com varais atravessados para secar as roupas e uns pares de “republicanos”: Antônio Cunha, Diógenes (irmão de Acir), Bonfim, Antônio de Pádua (que foi meu colega de farda em 1964/65), dois joalheiros (João e Nem). Depois dessa época, só mantive escasso contato com Bomfim, pois Diógenes morreu, e o resto soverteu no mundo.

Nos fins de semana, íamos para um suspeitíssimo clubezinho por nome “Palmeiras”, em Taguatinga, cujo ambiente até o Capeta tinha vergonha de entrar. Mas íamos tocando a vida, dificultosa, mas cheia de aventuras. E muitas vezes tínhamos de contar as moedas para pagar o coletivo da volta, e uma vez um trocador nos despejou do ônibus no início da W-3, porque um ficava falando que era o outro que ia pagar a passagem, que nenhum de nós tinha, restando chegar a pé à república, quase oito quilômetros adiante... e às três da madrugada. Roupas, só uma ou duas mudas, porque o dinheiro não dava para comprar mais, o que nos obrigava a um bate-enxuga, que levava nosso varal a viver empencado: como não tínhamos como pagar lavadeira, nós mesmos tratávamos de lavar, o que deixava as roupas encardidas, pois nem alvejante havia na época.

Diógenes trabalhava no Hospital Distrital de Brasília (HDB) e tinha um prestigiozinho, de sorte que, com o salario que malmente dava para pagar o aluguel e de vez em quando pedir uma coca cola acompanhada de três copos, eu ia à noite para o HDB filar o arroz com carne moída que era servido aos plantonistas à meia-noite.

Como Diógenes era estudante de Engenharia na UNB, tinha que estudar durante o dia, e sendo funcionário efetivo da Fundação Hospitalar do DF, tratou de conseguir um regime de plantão, trabalhando à noite. Eu vivia sempre desocupado à noite, e com o estômago chegando ao espinhaço (que só dava pra comer no almoço) e passei a ir com ele pro HDB, no intuito de filar o boião da meia-noite no restaurante do hospital. E ficava no guichê do pronto-socorro preenchendo fichas pro povo que ali chegava. E de tanto “trabalhar” ali no guichê, o pessoal do hospital cuidava que eu era também funcionário, com direito a entrar na fila do “bandejão” e matar a fome à meia-noite. E cheguei a “quebrar o galho” do agente de polícia que ficava de plantão, fazendo ocorrências policiais para dar-lhe um pouco de folga. O dia-a-dia permitia que até fôssemos cumprimentados pelo nome.

Mas um dia a casa caiu: assumiu a contabilidade do hospital um camarada durão, que constatou que o volume de gente que comia no bandejão” da meia-noite superava em muito o número de funcionários de fato. E justo naquele dia, eu na fila esperando ser servido, quando vi uma confusão lá na frente, com polícia e tudo, e me informaram que a ordem era só servir pra quem tivesse a carteira funcional; e – pior – quem não estivesse com ela estava sendo preso e levado à delegacia. E eu não tinha um toco de documento comprobatório de vínculo com o hospital.

Tratei de me escafeder, pois não era nem mané de sujeitar-me a ser preso.

Perdi a “boquinha”. E passei a amargar a fome toda a noite.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopovoa@uol.com.br)