Ele era um médico muito engraçado.
Cardiologista de mão cheia, muito inteligente, mas , ao contrário da maioria destes estudiosos da medicina, extremamente espirituoso. Gostar de pôr apelido nos outros era com ele mesmo: cachorrão, boca preta, salaminguê, espantalho de plantação, exorcista, vela do meio e tantos outros que a boa etiqueta aconselha a não revelar aqui...
Gostava também de política. Discutir e participar.
E, na defesa dos princípios nos quais acreditava (embora nem sempre tão bons quão por ele imaginados ), entrava em arroubos que iam da poesia ao achincalhe em questão de poucos minutos. E tome verso, e tome palavrão, e tome café preto por cima...
Gabava-se de ser ateu.
Esta história de Deus e principalmente de religiões não era com ele. Se alguém procurasse entrar neste campo era logo barrado.
Amigo, eu sou ateu. E não me venha com conversa fiada de igrejas e religiões!!!
E tratava logo de sair do assunto, pela introdução de outro tema na conversa, eis que este não lhe interessava em nada.
Os anos foram passando e certa vez fui procurado por ele em meu escritório. Fazia já um tempo que não nos víamos.
Professor, começou, preciso dos seus serviços. Estou com o cara entalado aqui na garganta. Safado, está me enrolando já faz muito tempo e quero resolver esta pendenga de uma vez. Preciso que você vá comigo até lá ( era em Corumbá de Goiás ) porque o que ele disser eu quero deixar escrito e assinado para não haver furo.
Concordei e alguns dias depois estávamos no carro dele ( um daqueles carrões antigos importados ), ele dirigindo.
E a conversa foi uma beleza durante quase todo o trajeto, até que, de sopetão, ele me espeta esta afirmativa:
Professor, agora sou cristão!
Aquilo caiu em minha cabeça como um desmoronamento.
Não que tivesse achado ruim. Muito pelo contrário, fiquei feliz em ver que o meu amigo tomara o caminho do espírito, acordara a tempo...
Mas que era inacreditável, isto era mesmo!
E ele sentiu minha incredulidade.
Passou a me narrar eventos bíblicos com os quais nunca se envolvera e nos quais não acreditava antes. Citava passagens das Escrituras Sagradas com a firmeza de quem lera e relera as mesmas muitas vezes.
Fiquei impressionado.
Mas então Doutor... o senhor agora é religioso... cristão ?
Ele sentiu na carne uma ponta de dúvida da minha voz e soltou o argumento maior, aquele que espancaria de vez toda e qualquer dúvida minha.
Tá duvidando, professor ? Pois fique sabendo que eu não só leio a Bíblia como ando com ela pra todo lado. Ela é minha luz, meu rumo. Agora mesmo estou com ela aqui no carro. Trouxe para ser o meu guia neste encontro com este embusteiro que me deve e não quer pagar.
Olhei em volta, no carro, banco traseiro e não vi a Bíblia.
Ele então adiantou: No porta-luvas do carro, professor.
Naqueles carrões, o porta-luvas era quase um porta-malas. Abri aquela tampa enorme e logo divisei uma Bíblia daqueles com letras grandes. Um respeitável volume.
Mas quando estendi a mão para pegar o Livro Sagrado meus dedos tocaram em algo frio. Lembrei-me do conto Ninho de Periquitos, do nosso notável Hugo de Carvalho Ramos...
Afastei a Bíblia um pouco e me deparei com um enorme revólver calibre 38, cano longo.
Doutor, o que é isso? Ao lado do Livro Sagrado uma arma de fogo que mais parece um canhão? Se o senhor vai levando a Bíblia, não precisa de revólver!!!
E ele, na maior tranquilidade e com seu aguçado senso, respondeu:
Professor, primeiro eu vou tentar com a Bíblia...mas se, por acaso, não der certo, por garantia levo o 38!!!
Tive que cair na gargalhada. Ele não tinha jeito mesmo.
Graças a Deus, não foi preciso nada disto. O devedor reconheceu a dívida e assinou os papéis que queríamos, sem discutir.
O tempo passou, de novo. Meu amigo já faleceu.
E estamos nós aqui, a labutar com a política e os políticos deste país que nos envergonham no exterior e nos matam no interior, com tanta mentira, tanto engodo, tanta lama...
Creio firmemente na força da oração.
Mas, como o doutor, não dispenso o 38!
Calma... não estou pregando luta armada, mas creio que só as orações não resolverão.
Vai ser preciso botar os pés nas ruas. Gastar as solas dos sapatos 38, e muito, para comparecer e protestar, gritar, não aceitar que este estado de coisas continue. Melhorar as leis, para que não sejam meros instrumentos da impunidade, aparelhar mais a segurança pública para garantia do cidadão de bem, socorrer a saúde, antes que a morte chegue para ela e para nós, e, principalmente, dignificar de verdade a educação e os educadores porque é nela e neles que se encontra a redenção de qualquer nação que se preze.
(Getulio Targino Lima, advogado, professor emérito ( UFG), jornalista, escritor, membro da Associação Nacional dos Escritores e da Academia Goiana de Letras E-mail: [email protected])