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OPINIÃO

As duas faces da moeda digital

O Bitcoin (criptomoeda) é uma espécie de dinheiro, como o real e o dólar, mas diferencia-se de toda e qualquer moeda por ser puramente virtual e por não ser emitido por nenhuma autoridade estatal. Nos comércios eletrônicos, o Bitcoin consiste na forma ideal de pagamento, já que é rápido, barato e seguro. Hoje, juntando o valor de todas as Bitcoin do mundo, é possível chegar à quantia de US$ 14 bilhões.

O Bitcoin foi criado em 2008, por um programador conhecido pelo nome de Satoshi Nakamoto, e é considerado por alguns especialistas como uma invenção revolucionária, pois, pela primeira vez, o problema do gasto duplo, que acontece quando um usuário tenta gastar as mesmas moedas digitais mais de uma vez, pode ser resolvido sem a presença de um intermediário, como o Paypal ou o Mastercard.

Resultado de mais de duas décadas de trabalho e pesquisa por desenvolvedores anônimos, essa moeda digital foi criada em razão do sistema financeiro instável, da perda da privacidade financeira e da crescente intervenção estatal e regulamentação estatal no campo financeiro e monetário.

A moeda digital é fruto da conjugação das seguintes tecnologias: a veiculação de dados por meio da rede peer-to-peer e a criptografia. Uma rede peer-to-peer, ao contrário das redes tradicionais, não possui um servidor central, sendo considerada, portanto, uma rede descentralizada. Essas redes começaram a ser desenvolvidas na década de 60 nos Estados Unidos, e ganharam ampla popularidade no final da década de 90, mobilizando milhões de pessoas dedicadas a compartilhar arquivos de áudio, usando programas bastante conhecidos como Emule, Kazaa Lite e etc. A rede peer-to-peer, no âmbito do mercado de Bitcoin, possui a função fundamental de distribuir os registros do blockchain a todo instante.

A criptografia, considerada um ramo da Matemática, não consiste numa inovação tecnológica. Os seus primeiros registros datam do período do Egito Antigo, e foi bastante utilizada, historicamente, em assuntos diplomáticos e em guerras. Criptografia consiste basicamente no estudo de técnicas e princípios relacionados à transformação da forma original da informação para uma forma ilegível, estando diretamente relacionada com o sigilo e a segurança de dados. Ela atingiu o seu apogeu na era computação, e está presente no cotidiano de todos, seja em redes e sistemas de comunicações, no comércio online, em sites e aplicativos de bancos, nas redes sociais e etc. No âmbito da Bitcoin, a criptografia garante a autenticidade e veracidade das informações, impedindo o gasto desenfreado e fraudulento de algum usuário; e garante a integridade das informações, de forma a impedir a violação do histórico de negociações (blockchain).

Todas as transações realizadas no mercado de Bitcoin são registradas em um banco de dados público chamado de blockchain, que descreve o histórico de absolutamente todas as transações efetuadas.  Desta forma, todas as novas operações realizadas são confrontadas com as informações constantes no blockchain, assegurando que os mesmos bitcoins não foram gastos anteriormente. As transações das “moedas” entre os usuários utilizam a rede peer-to-peer, composta por milhares de usuários, sendo essencial para a distribuição do Blockchain para os usuários. Este sistema é o responsável por permitir as transações entre usuários sem a necessidade da intervenção de um terceiro.

A verificação das operações realizadas e a prevenção do gasto duplo são realizadas pelo uso de criptografia de chave pública. Por meio de tal sistema, são destinadas duas chaves a cada usuário, sendo uma privada, que deve ser mantida em segredo, e a outra pública, que pode ser distribuída para todos. A criptografia das chaves públicas, por não estarem vinculadas a nenhum usuário, garante o registro de todas as transações no interior da rede Bitcoin, impedindo qualquer tipo de fraude.

As transações no sistema Bitcoin não são realizadas em dólares ou reais, como no Paypal, mas sim em bitcoins. O valor do Bitcoin é definido em um mercado aberto, não havendo nenhuma participação estatal. Bitcoins são criados por meio da resolução de problemas matemáticos complexos envolvendo transações no blockchain. À medida que os problemas matemáticos são resolvidos, o próprio sistema aumenta a dificuldades das demais operações matemáticas.

Bitcoins não possuem um processo de criação contínuo e indefinido. Somente um número limitado de “moedas” poderá ser criado, de forma a simular o mercado de extração de algum metal precioso. O limite estabelecido foi de 21 milhões de Bitcoins, e estima-se que a última moeda será minerada no ano de 2140.

Bitcoin é uma moeda nova, que ainda não é muito aceita, mas que possui também alguns benefícios e vantagens bastante atrativas. As transações são mais rápidas e baratas, justamente por não existirem intermediários. Desta forma, inexistem taxas e cobranças que aumentam os custos das transações.

Por exemplo, o sistema de cartão de crédito envolve o emissor (geralmente uma instituição financeira lato sensu, que se compromete a realizar os pagamentos pelo titular do cartão em troca de um percentual), o titular (pessoa habilitada a utilizar os cartões do crédito), e o fornecedor de bens ou serviços (destinatário da remuneração, que é realizada pelo emissor do cartão, e não pelo adquirente, em virtude da existência de um contrato). As administradoras de cartões de crédito exigem dos clientes, muitas vezes, uma taxa anual para a manutenção do sistema. A taxa de anuidade, cuja função é custear os serviços referentes ao cartão, variará conforme o uso, tempo de contrato, os riscos, os limites, situação de pagador e etc. Além disso, dispensamos comentários com relação aos juros. Por parte dos fornecedores, eles terão que pagar uma taxa de filiação ao emissor, uma comissão que variará conforme o valor da fatura e deverão realizar outros gastos adicionais, que irão aumentar os custos dos negócios. Se o comerciante recusa pagamentos com cartões de crédito, ele perde um número considerável de clientes e reduz muito as suas vendas, já que muitas pessoas preferem realizar suas transações utilizando essa comodidade.

As moedas digitais facilitam transações diretas sem a necessidade de intervenção de um terceiro, removendo taxas e custos que são inerentes às operações realizadas com cartões de crédito. Assim, em razão de não serem obrigados a pagar taxas às emissoras de cartão de crédito, os comerciantes podem repassar a economia realizada aos seus consumidores.

O Bitcoin, sendo um sistema de pagamentos irreversível, elimina ainda o risco de fraude nos estornos de pagamentos. Em razão de situações de opressão política, crises e emergências, pessoas que procuram sigilo e manutenção da intimidade podem se beneficiar muito da privacidade proporcionada pelo sistema Bitcoin. Esse sistema também é uma boa alternativa para quem procura uma alternativa à moeda depreciada, e aos prejuízos decorrentes de controles de capitais e das políticas equivocadas de bancos centrais.

Enfim, o sistema de moedas digitais apresenta muitos benefícios, mas também apresentada algumas desvantagens e alguns problemas.  As moedas digitais enfrentam uma grande volatilidade, podendo apresentar um valor acentuadamente flutuante; elas apresentam alguns desafios relacionados à segurança, exigindo que os usuários sejam cautelosos na proteção e gerenciamento da sua carteira digital, que poderá sofrer um ataque de hackers e malwares; elas podem ser uma boa opção para a realização de lavagem de dinheiro e para o financiamento de grupos terroristas e de tráfico de produtos ilegais. Vamos dedicar uma atenção especial a este último problema/desafio.

O Bitcoin, por mais que não tenha sido criado para fins ilícitos, é utilizada como instrumento de anonimato para a o cometimento de crimes e dispersão dos seus frutos, sem riscos de fiscalização por parte do poder público. A carteira Bitcoin é acessada por intermédio de uma conta em que as pessoas possuem a vantagem de utilizar pseudôminos e definir com total liberdade os nomes de seus usuários, não havendo necessidade de repassar dados de natureza pessoal ao vendedor ou comprador, inexistindo ainda o controle da validação da compra por um terceiro, o que acaba estimulando a sua utilização por parte dos criminosos.

A inexistência de uma instituição financeira ou órgão central estatal, regulando e fiscalizando essa atividade digital, acaba figurando como uma desvantagem e um ponto fraco, em razão de permitir que essa inovação tecnológica seja utilizada indiscriminadamente como ferramenta para a prática e custeio de atividades ilícitas. A discussão sobre a regulação do mercado de Bitcoin é extremamente complexa, não se limitando apenas na criação de normas voltadas para a proteção dos usuários e da sociedade. Outras questões importantes, que gravitam em torno da situação, como a privacidade dos usuários, a função do Estado como controlador/emissor de moedas e a complexidade do funcionamento desta economia digital; devem ser consideradas e colocadas em debate.

Por maiores que sejam as facilidades na prática de crimes que tenham como moeda as Bitcoins, devemos sobressaltar que essa moeda digital não é um objeto ilícito em si, em razão do uso no meio ilegal de moedas oficiais, tal como o Dólar e o Real. Não podemos ressaltar o uso ilegítimo e ilegal, e nos esquecermos do uso legítimo e legal desta moeda, que possui suas vantagens e benefícios. A proibição do uso de Bitcoin não iria prejudicar nem extinguir a rede, que usa a tecnologia peer-to-peer, apenas iria afastar alguns usuários. Não sabemos o que nos aguarda no futuro. A Bitcoin poderá se tornar o sistema de pagamentos predominante na próxima geração, da mesma forma que poderá ser uma mera tendência que acabará sendo deixada de lado no futuro. Estudiosos apontam que as moedas digitais irão continuar crescendo pelo uso intenso e crescente da internet, pelo aumento do comércio eletrônico, pela procura por maior privacidade ou anonimato, pelos reduzidos custos de transação, pela celeridade das operações, etc. A simples proibição da moeda pode não ser a decisão mais correta e adequada, sendo que a punição e fiscalização por mau uso, aparentemente, figuram como as medidas mais adequadas.

Muitos países não se pronunciaram sobre a legalidade e demais aspectos jurídicos e administrativos da Bitcoin. Em alguns países como Alemanha, EUA e Austrália; o uso da moeda foi autorizado. Em outros, como Bolívia, Equador, Bangladesh e Quirguistão; a moeda foi classificada como ilegal. Aparentemente, a Coréia do Sul irá criar um marco regulatório para Bitcoin ainda este ano, em virtude da popularidade que moeda possui no país.

No Brasil, por mais que seja aparente a deficiência da legislação ante a evolução tecnológica e a propagação de crimes virtuais, temos sim algumas normas destinadas a reprimir e punir ilícitos práticos por meio de ferramentas e mecanismos virtuais, mas ainda detemos nenhuma norma que se refira exclusivamente ao uso de Bitcoins. Em fevereiro de 2014, o Banco Central do Brasil emitiu o Comunicado N° 25.306, apontando os riscos de aquisição e transação das moedas virtuais. Foram enumerados alguns pontos negativos, mas o BACEN chegou à conclusão que essas moedas não apresentam risco ao Sistema Financeiro Nacional, e afirmou estar acompanhando a evolução de tal moeda, para fins de adoção de eventuais medidas que estejam em conformidade com a sua competência legal.

Para fins de repressão criminal, foi elaborada a Lei n° 12.737/12, que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, e que trouxe algumas mudanças para a punição desses crimes. Esta lei foi apelidada como “Lei Carolina Dieckmann”, porque durante a tramitação desta lei na Câmara dos Deputados, foram divulgadas fotos íntimas da atriz brasileira, sem sua autorização, causando um grande alvoroço em sua vida. Até a aprovação desta lei, a punição de crimes cibernéticos somente era possível na forma descrita na legislação comum, não havendo ainda crimes específicos relacionados com o tema. A referida lei introduziu no art. 154-A do Código Penal o crime de “invasão de dispositivo informático”, tipificando, desta forma, a invasão de dispositivo informático que tenha a finalidade de obter, adulterar ou destruir dados sem a autorização do proprietário e a instalação de vulnerabilidades, como vírus de computador, para obter vantagem ilícita.

O maior desafio a ser enfrentado é a identificação do usuário que prática condutas criminosas e nocivas no meio eletrônico, lesando diversas vítimas. Isso é um problema grave que afeta tanto a apuração de crimes de menor potencial ofensivo, como os crimes contra a honra, normalmente praticados e disseminados nas redes sociais, quanto os crimes de tráfico de armas, drogas e quaisquer ilícitos através da web.  O Marco Civil da Internet garantiu uma maior proteção à privacidade, ampliou a regulamentação pertinente à liberdade de expressão, definindo casos em que o provedor de aplicações de internet torne o conteúdo indevido indisponível, e garantiu a neutralidade da rede, de forma a garantir que todos os dados receberão tratamento isonômico independente de seu conteúdo, dispositivo de acesso, origem e destino. A mencionada lei abordou ainda a questão da identificação do usuário, obrigando o provedor responsável, mediante ordem judicial, contribuir para a identificação do usuário ou terminal que eventualmente tenha sido utilizado.

Estamos passando por um processo de evolução legislativa. Nosso país começou a dar os seus primeiros passos na regulação do ciberespaço, de forma a garantir a segurança e a repressão de crimes. Muito se tem questionado sobre a intervenção estatal, seja nos aspectos econômicos, previdenciários, sociais e etc. O Estado tem sua importância, querendo, ou não, somos ligados a ele, e temos uma relação de dependência. Precisamos nos organizar. A regulamentação e a intervenção estatal devem ser realizadas de forma inteligente, de forma a garantir a proteção e a manutenção do bem estar de todos. Tanto eventuais ausências quanto excessos de intervenção e regulação estatal podem ser prejudiciais. Precisamos buscar sempre o equilíbrio necessário para manter a paz e o controle; e isso não é uma tarefa fácil, mas também não consiste numa missão impossível.

No Brasil, portanto, o foco principal da regulamentação do uso da internet se concentra especificamente à repressão de crimes praticados no cenário virtual. Temos todo um aparato legislativo destinado a reprimir abusos cometidos no ambiente digital, protegendo os seus usuários. Com relação às Bitcoins, por ser uma moeda que apresenta um alcance restrito e ainda apresenta uma baixa aceitação no mercado, não apresenta uma ameaça ao Real nem ao Sistema Financeiro Nacional, não sendo necessária uma regulamentação mais extensa. Por mais que essas moedas digitais apresentem problemas, elas não deixam de ter muitas qualidades que merecem ser estudas, exploradas e apreciadas.

(Lucas Rocha Vita, advogado, Victor Hugo de Sá Silva, estagiário e estudante de Direito, Jordana Ribeiro Gomes, bacharel em Direito)

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