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OPINIÃO

As pequenas coisas

Se houvesse algum guia prático sobre como bem viver, gostaria de saber em qual prateleira da livraria ficaria exposto. Autoajuda? Obras técnicas? Literatura? Será que alguém iria lê-lo? Há realmente necessidade de orientação para atravessar a vida? A vida é travessia mesmo? Ou vale apela jornada?

A vida não tem manual de instruções. Não que faça diferença. Pouca gente lê um daqueles livros que ensinam como utilizar o produto recém-adquirido. A gente segue da mesma maneira. Arrisca, acerta, erra, arrepende... talvez algum resultado inesperado torne as coisas melhores do que se antevia.

Talvez seja melhor um manual de pequenas providências, que não se aprofunde em grandes dilemas humanos. Por que saber o que significa o amor se o que preciso mesmo é não esquecer a janela de casa aberta em dia de chuva forte? Não faz sentido discutir se há ou não alma se me esqueci de pagar a energia elétrica e hoje terei de tomar banho frio. Ou, pior, fazer o número dois e perceber que o papel higiênico não passa de uma lembrança querida.

Muitas vezes, seria batuta algo que nos orientasse com as pequenas coisas. Talvez seja mais fácil sonhar e perseguir grandes conquistas – ainda que não levem a nada. Planejamento, dedicação, compromisso, responsabilidade e trabalho duro quase sempre leva o sujeito onde deseja chegar. O que pega é o curso dessa jornada.

Lapsos como esquecer o aniversário da mulher ou as crianças na escola são coisas do cotidiano, mas que dão uma dor de cabeça danada. Não levantar a tampa do vaso. Deixar a toalha molhada sobre a cama. Pendurar a roupa de baixo molhada na torneira do chuveiro. Deixar cabelo no ralo. Tossir sem cobrir a boca. A lista é imensa.

No século XVI, o holandês Erasmo de Roterdã escreveu um guia para educar crianças da aristocracia europeia em boas maneiras. Mais ou menos orientava como deveriam se portar à mesa, rotinas de comportamento na corte ou modo de travar prosa com pessoas mais velhas. Não era exatamente um detalhamento de pequenas providências, mas auxiliou, à sua maneira, a consolidar condutas humanas por meio do condicionamento prático.

Há um ditado que afirmar ser de pequenino que se endireita o pepino. Imagino o quão ingrata é a missão de pais e mães em dar rumo aos filhos. Peleja de um jeito, o trem não funciona. Arrocha de outro, o menino não aprende. Não me refiro aos valores repassados por pai e mãe, mas a atenção aos detalhes.

Vejo pais preocupados com o menino que deixou comida cair no sofá da sala. Do outro que não urina dentro do vaso. Ou a mocinha que esqueceu a identidade no dia da prova de vestibular. O estresse amoroso causado nos genitores poderia ser amenizado se houvesse uma maneira prática e eficiente de lembrar dos pequenos detalhes.

Parece que o cérebro humano é bastante seletivo. Informações que consideramos irrelevantes ou redundantes ou desnecessárias tendem a sumir na imensidão de dados que compõe nosso pensamento. Tudo é informação para o cérebro. A iluminação, os sons, o cheiro e os dados em si.

Quando você conversa com alguém, não é apenas o conteúdo da prosa que se absorve, mas os movimentos corporais, a temperatura e as pessoas passando ao fundo. Filtrar essa quantidade de informação é uma missão ingrata. Consta que cochilar meia hora antes de estudar, por exemplo, pode aumentar razoavelmente o rendimento. Parece que é no sono que a gente seleciona o que importa fixar. Neste contexto, como se lembrar das pequenas providências?

Alguns cientistas cognitivos afirmam que esquecer é fundamental para o aprendizado. Outros, que prioridades devem ser estabelecidas por cada um. Em um mundo onde a ansiedade parece controlar cada passo e tomada de decisão, como ficaria isso? Como lidar com o excesso de informação sem esquecer em qual vaga do estacionamento está o carro?

Há quem veja saída pela tecnologia e automação da vida. Há softwares que automaticamente fecham janelas se a chuva começar ou que acendem o farol do carro se o ambiente ficar escuro. Outros, entendem que esquecer as pequenas coisas é da vida mesmo. Faz parte, como diz o meu pai. Para mim, a verdade é que se a vida tiver receita ela perde o sabor.

(Victor Hugo Lopes, jornalista)

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