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OPINIÃO

Ai, que saudades de dona Goiana!

Anos atrás, retratei na imprensa mineira, em uma crônica a figura de Dona Goiana, que marcou época no nosso tempinho gostoso do São José do Duro.

Quando me entendi por gente, já vi Dona Goiana entrando imponente na rua, montada numa mulona preta por nome “Brasileira”, que esquipava numa elegância de invejar qualquer cavalo marchador.

Dona Goiana, que por notícia era possense, conterrânea do Emílio Vieira, era daquelas mulheres destemidas, que enfrentavam qualquer pega-pra-capar: ela própria administrava a fazenda São Sebastião, a três léguas da rua, nas margens do rio Palmeiras, beira da rodagem que leva a Brasília, que era alcançada depois de subir e descer pirambeiras dos morros do Casco d’Anta e de passar pelas estradas visagentas do Bom Jesus.

Mas para ela não havia coisa que lhe trouxesse um fanisco de medo: um bem municiado trinta-e-oito preso à cinta era apenas um complemento de sua natureza corajuda, que trazia um pouco de Maria Quitéria, a destemida baiana que um dia, mesmo com a oposição dos pais, alistou-se como soldado num quartel de artilharia e só depois de muitas façanhas heroicas nas lutas de independência e que durante as lutas de Independências é que se descobriu que era mulher, passando a chamar-se Soldado Medeiros (pois Maria Quitéria de Jesus Medeiros era seu nome).

Outras vezes, Dona Goiâna se assemelhava à disposta e diligente “Chica Bandeira”, que impunha a ordem nos domínio do demagógico prefeito Odorico Paraguaçu, da Sucupira do “Bem Amado” que a televisão criou para satirizar o cotidiano.

Pouca gente conheci que tivesse a disposição de Dona Goiana: sozinha, administrava a peonagem da fazenda, labutava em tudo quanto era serviço, chamando o vaqueiro às falas quando necessário, vendendo gado, fazendo cercas, comprando bezerros; na rua, sustentando o comércio com o armazém de secos e molhados.

Mulher singular, Dona Goiana, que na pia batismal ganhou o nome de Eufrosina Santos, também foi política, ganhando no voto um lugar na Câmara Municipal, o que, no entanto, não lhe tolhia os movimentos de fazendeira e comerciante.

Forte, gorda, bem nutrida, vivia em constante atividade, e não me lembro de jamais tê-la visto num momento de lazer: quando não estava na fazenda ou atrás do balcão de sua venda, estava correndo o sertão vendendo mercadorias e comprando o que encontrasse barato.

Casada com o legendário Cel. Abílio Wolney, pouco durou a união, que se desfez sem ressentimentos, e viviam os dois em pacífica convivência, cada um na sua casa, e acho que sua natureza de cigana era uma pedra no caminho de dona-de-casa, que talvez ela não tivesse paciência de ficar ali confinada num pequeno universo onde a administração se resumia no lavar roupas, varrer casa e fazer o de comer, que filhos ela não teve.

Há uns anos, talvez forçada pela necessidade de honrar seus negócios, ela teve de se desfazer de sua fazenda, e a venda do São Sebastião foi, para mim, o início de seu fim: acabou-se o garboso esquipar da mulona “Brasileira” cidade adentro, muitas vezes tarde da noite, numa prova de que o destemor de Dona Goiana não respeitava as passagens visagentas do Bom Jesus e as taperas da Fazendinha, sempre tidas por cheias de aleivosias.

Dali por diante, ela passou a viver na boleia de uma camionete através do sertão, vendendo sal, querosene, açúcar e outros produtos nas portas das fazendas, onde mantinha enorme freguesia, que, não obstante o preço salgado de sua mercadoria, era-lhe fiel.

De uns tempos em diante, não sei se devido à idade, deu um basta no seu corre-corre, que ela não era mais de meia-idade ou se pelo batalhar pela vida, que filhos ela não tivera, e vivia na companhia da fiel companheira Belinha, que lhe entendia as manias e adivinhava-lhes os gostos.

Bom papo, era cheia de assuntos e capaz de entabular longa conversa com a gente, mas a idade e o cansaço forçaram-na a viver macambúzia, já dis-pensando a boa dose de pinga e o traçado com que brindava a visita dos amigos. Vivia me convidando para levá-la em Maria Segurada, benzedores e curandeiros, na esperança de recobrar a saúde ou mesmo – quem sabe – trazer-lhe de volta a disposição de antes. Mas nem mesmo o velho Severiano da Itaboca conseguiu evitar a irreversibilidade do tempo, que conspirou contra sua saúde, levando-a a um derrame, que a levou à sepultura, carregando para o outro mundo mais um personagem que deixou profundas marcas na memória de Dianópolis.

Quando fecho os olhos, ainda vejo a mulona “Brasileira” esquipando com majestade rua adentro, a Dona Goiana, de chapéu à cabeça e revólver à cinta, e, como num “slide”, sua camioneta rasgando sertão deixando um tubo de poeira, num exemplo invulgar de quem viveu a vida inteira lutando como ninguém para fazer algo.

Ela se foi, mas seu exemplo ficou.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI -, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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