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OPINIÃO

Tiradentes e a delação (premiada) de Silvério dos Reis

No último quarto do século XVIII, a opulenta Minas Gerais debatia-se com a queda da produção aurífera, prestes ao esgotamento. Nem por isso se mostrava menos implacável a metrópole portuguesa, indiferente à debilidade econômica que oprimia a importante capitania.    Gerava-se menos riqueza e pagava-se mais imposto.  Logo campeavam à larga a sonegação e o contrabando,  duas práticas marginais antigas mas sempre presentes na crônica policial desde o Brasil-colônia,  e nos nossos dias correntes com mais virulência !
Por imposição das Ordenações Filipinas,  as jazidas de aluvião e as minas de ouro e diamantes descobertas até então pertenciam ao Reino de Portugal, o que ensejava grandes evasões e toda sorte de perseguição aos bandeirantes embrenhados naqueles territórios inóspitos e escarpados.
Ocorre que para fomentar o crescimento da receita ,  mudou-se o critério com um decreto real que concedia ao descobridor da  ” mina rica”  o direito de exploração, com a obrigação de pagar um imposto de 20% sobre a produção aurífera !  Era o “quinto dos infernos”,  como logo foi amaldiçoada a cobrança em cima do suor e do sangue dos intrépidos mineradores !
Já desses tempos de arrojo fiscal vem a curiosa expressão  “santa do pau oco” - hoje apenas uma referência semântica depreciativa a mulheres de conduta duvidosa !  Sua origem se deve ao fato de, à época da lauta extração mineral na colônia,  o ouro em pó contrabandeado era escondido no interior das esculturas de madeira dos santos então exportadas para Portugal! Só assim os mineradores se safavam das garras do fisco real com o artesanato camuflado das imagens para adoração religiosa...!
Sobrevindo a exaustão das jazidas de aluvião, e em decorrência da crítica queda da arrecadação e do atraso no pagamento do famigerado quinto,  a cota de cem arrobas de ouro anuais deixara de ser cumprida,  o que deu causa à edição do temível processo de taxação da derrama ,  uma artimanha fiscal do astuto Marques de Pombal para cobrança forçada dos quintos e confisco de outros bens, como açúcar e fumo, da população visando a inteirar o valor do imposto que iria ajudar a reconstrução de Lisboa, destruída por um forte terremoto, e,  sobretudo, para resgatar as altas dívidas de Portugal com a Inglaterra.
Oficialmente, estava instituído no Brasil o primeiro terror fiscal que iria prevalecer, no tempo e no espaço, até nossos dias, como herança colonial que persegue o pobre contribuinte sem vontade (ou sem coragem), de levantar nova conjura , como o fizeram os inconfidentes no passado ante a prepotência da metrópole portuguesa.
O que fariam hoje aqueles bravos mineiros rebelados contra o maldito quinto, quando, na atualidade, o nosso não menos implacável imposto de renda atinge o perverso patamar dos 27,5 % (leia-se:  vinte e sete e meio por cento!) sobre os minguados ganhos do trabalho do contribuinte sofrido e notoriamente despossuído de minas de ouro ?!
Apesar do registro de levantes e sedições anteriores à conjuração mineira, o episódio marcante de Vila Rica assinala a explosão do sentimento nativista e antilusitano frente à exorbitância dos tributos taxados e à reação em cadeia de mineradores a fazendeiros e de padres a juristas,  com pesadas dívidas à coroa,  unidos contra a opressão fiscal e o autoritarismo dos administradores da Coroa. Ademais, já fermentara no espírito dos inconfidentes o ideário iluminista que deu impulso aos movimentos de libertação da França e dos Estados Unidos.
Foi nesse contexto histórico, pois,  que a crise do sistema colonial se desenvolveu a partir do momento em que a administração da Coroa impunha a derrama, um conjunto de medidas políticas de caráter arrecadador e repressor! O peso da espoliação se fazia sentir com maior intensidade em Minas Gerais,  principal região aurífera.
Quando se evoca e reverencia o martírio do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, perdura na consciência cívica coletiva uma tormentosa indagação que os doutos historiadores pátrios não lograram ainda elucidar,  convincentemente,  para compreensão e julgamento da posteridade.
Foi dramática a postura de Tiradentes assumindo isoladamente sua adesão ao movimento separatista,  apesar de extensa a relação de participantes da insurreição de Vila Rica,  denunciada graças à vil traição de Joaquim Silvério dos Reis.  Este, sim, foi o precursor da primeira delação premiada dos nossos anais forenses - não tão numerosa quanto à lista da Odebrecht-, visto que confabulara com o governo da província para obter com o gesto infame o perdão de suas dívidas com a Coroa! Sabe-se que a devassa promoveu a acusação de trinta e quatro inconfidentes,  mas apenas Tiradentes foi executado aviltantemente!
Até hoje ,  considera-se inexplicável que naquele contexto histórico da conjuração em prol da independência apenas um participante,  altivo e intimorato, tenha assumido sozinho a acusação de infidelidade ao Rei! No processo de instrução e julgamento, Tiradentes, miliciano subalterno, modesto e de baixa instrução,  foi o único réu condenado à pena capital de enforcamento e esquartejamento!
No entanto, a chama das ideias liberais e republicanas também ardera no peito de tantos outros conspiradores, ilustres e de prestígio, presos e processados, mas com penas comutadas e até perdoadas. Tiradentes, homem simples do povo,  não fazia parte da elite social nem integrava o grupo de intelectuais de Vila Rica. Contudo, era um fidalgo de índole e de mente e possuía a facilidade de exercer influências. Por isso sofreu sozinho toda a ignomínia da vingança dos seus acusadores através de uma sentença parcial, iníqua e submissa ao mando colonial!
Sabe-se que, durante o julgamento, Tiradentes não buscou atenuantes para sua defesa e tampouco abjurou suas convicções libertárias! Ao contrário, engrandeceu-as, sim, com a reafirmação briosa e grave da sua participação revolucionária a favor da separação de Portugal!
Teria sido essa postura desafiadora diante dos julgadores uma agravante decisiva para sua condenação tão infamante? A pergunta jamais terá a verdadeira resposta eis que a acusação lançada contra Tiradentes pelo crime de lesa-majestade não teve o mesmo peso contra os demais conspiradores, ilustres e poderosos, entre outros, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Claudio Manoel da Costa, poupados da pena capital!
A exaltação do sacrifício de Tiradentes para consagrar a memória do protomártir da Independência é,  e será sempre, um dever solene e fervoroso dos brasileiros, mais do que nunca, irmanados na crença do Brasil novo,  uno, forte, redivivo em todas as suas energias vitais no combate inflexível à corrupção, aos vícios e às mazelas oficiais,  conscientes do compromisso irrenunciável com a democracia e com a liberdade, fiéis às lutas pelas reformas das leis e dos costumes políticos,  e intransigentes na defesa dos direitos das minorias e das conquistas sociais ! Veremos que o sonho libertador de Tiradentes não sucumbiu no cadafalso!
Com essa elevada aspiração,  urge apaziguar os espíritos e desarmar as paixões que toldam as divergências partidárias num niilismo ideológico desagregador, no sentido de reintegrar todos os brasileiros num só esforço patriótico capaz de superar a hora densa e aguda das agruras que padecemos,  e de retomar o caminho das virtudes cívicas e da moralidade pública para garantir a paz, a ordem jurídica,  a prosperidade econômica e o bem da Nação!
Como quer que seja,  no rodapé da História do Brasil, quase esquecidos,  foram lançados os nomes daqueles insurretos condenados com penas comutadas pelo desterro ou recolhidos às galés e aos conventos.  Somente o nome de Tiradentes,  modesto miliciano, executado por conspirar contra a dominação lusa e sonhar com um País livre,  está inscrito com letras de ouro no Panteão dos heróis da Pátria!
Por isso mesmo, ele será reverenciado perenemente. Da nobreza de caráter de Tiradentes ser digno não basta! É preciso perfilhar seu exemplo e exercitar na cidadania, na política e no trabalho, com inquebrantável devoção, seu legado de coragem e altruísmo!
“Liberdade, ainda que tardia”!

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