Home / Opinião

OPINIÃO

A França sob domínio do Islã

A morte de Antonio Candido reacendeu algumas discussões sobre a natureza e características da crítica que podem interessar de maneira especial a quem queira se ocupar da literatura contemporânea, mais proximamente daquela que já foi designada como literatura pós-moderna.

Nesse panorama a obra de Michel Houllebecq vem obtendo destaque desde pelo menos o ano de 2009 quando o autor recebeu o principal prêmio literário da França (Prêmio Goncourt). Segundo Antonio Candido, devem ser expressamente consideradas pela crítica, para a compreensão de uma obra literária ou artística, as circunstâncias históricas e sociais de sua composição. Tal observação nos parece algo óbvio, se tomarmos uma visada de distanciamento da atividade crítica, isto é, se não escrevemos textos om objetivo crítico-estético. Para quem se atreve a escrever sobre arte, porém esse aspecto é muito mais do que um detalhe e se torna uma grande dificuldade.

No caso de “Submissão”, a polêmica obra de Houllebecq lançada em janeiro de 2015 na França e em abril do mesmo ano no Brasil pela editora alfarábia, as cisrcusntâncias históricas e culturais destacadas por Candido não poderiam ter sido mais perturbadoras.

A obra veio à público exatamente na mesma semana do atentado terrorista ao Charlie Hebdo. A conexão infeliz ficará evidente ao leitor ao saber que “Submissão” é uma ficção política (distópica?) que imagina a França, em 2022, em plena ascensão de um político islâmico à presidência.

O contexto histórico e social, portanto, não poderia ser mais complexo. A França vive, sabemos, vários influxos de conflitos culturais baseados na tensão entre aspectos do dogmatismo da cultura islâmica e a tradição cultural francesa, vista como espécie de símbolo da Europa iluminista, do livre pensamento, da democracia, que seriam em certo sentido, as bases de um comportamento direcionado à tolerância à diversidade cultural. Como sabemos, as coisas se resolvem bem melhor nas palavras (ideais) do que em nossas ações cotidianas. O universalismo idealista do esclarecimento esbarra sempre nos aspectos mesquinhos, singulares, de nossa mente.

A obra de Houllebecq incorpora de maneira exemplar essas contradições. O autor é considerado pela crítica como um exemplo clássico da escrita pós-moderna. Mas o que significa essa designação? François Lyotard, na obra que talvez seja a mais citada como um estudo inicial dos efeitos do desgaste de princípios da modernidade “A condição pós-moderna” caracteriza a pós-modernidade como uma decorrência do descrédito ou da morte das chamadas grandes narrativas totalizantes. Tais teorias ou visões de mundo seriam fundamentadas na crença no progresso e nos ideais iluministas entre o quais os famosos figuram a liberdade e a fraternidade.

O diagnóstico um tanto sombrio da pós-modernidade é conhecido, a liberdade não se efetiva em uma sociedade na qual novos instrumentos de dominação cultural e política se manifestam ciclicamente, a fraternidade parece distante assim como Teerã está distante de Washington e a Europa do resto do mundo e a igualdade, bem, é melhor paramos por aqui...

A partir desse panorama surgem várias posturas intelectuais, entre elas o cinismo, uma espécie de niilismo sarcástico, um certo ceticismo esteticista e insensível às novas investidas do otimismo político e cultural. Esse tipo intelectual-psicológico é avesso aos diversos modismos da New Left, que seriam, na visão cínica, os herdeiros do esclarecimento e que teriam efetivado uma apropriação indébita dos ideais iluministas e os transformado em produtos culturalmente “veganos” sob a alegação de que teriam eliminado o terror e os gulags das antigas propostas de igualdade.

Em uma palavras eles são contemporâneos. Houllebecq é um cínico. Em Plataforma ele escreve pornograficamente sobre sexo, cinicamente sobre fundamentalismo, e ceticamente sobre globalização. Seu personagem (alter ego?), Michel, é um burocrata do Ministério da Cultura Francês de 40 anos, viciado em peep shows, que empreende uma excursão à Tailândia em um roteiro de turismo sexual. No romance não se sabe se ele traça uma visão crítica do aspecto grotesco do turismo, essa característica tão prosaica da pós-modernidade e da atual liberalização das sexualidades ou se ele se coloca como o observador cínico do fenômeno.

Em Partículas elementares, Michel, um biólogo determinista, vive o declínio da sua sexualidade. Suas atividades são ir ao supermercado do bairro tomar seus tranquilizantes e se aventurar em atividades New Age, alternativas ao tradicionalismo religioso. O traço mais marcante e destacado por todo a obra é a incapacidade de Michel de desenvolver um relacionamento amoroso, sua existência é praticamente centrada em seu projeto de pesquisa e em algum entretenimento sexual nas horas de folga do trabalho. Essas características das personagens de Houllebecq incorporariam o que interpretou-se como a condição pós-moderna do herói, para usar um termo da literatura romântica. Naquele modelo, porém, o herói superava problemas épicos, arriscava a própria vida e morria em um ato nobre. Os personagens de Houllebecq se arriscam ao saírem de casa para ir ao supermercado comprar uma comida congelada.

Isto nos leva de volta à “Submissão”. O personagem deste romance é professor na Sorborne e divide seu tempo entre reuniões com poucos amigos intelectuais, um relacionamento amoroso sem futuro pois sua parceira é uma judia e a França ruma para a islamização, e o consumo de vinhos e comida congelada gourmet. O assombro que a leitura provoca se dá pelo processo através do qual o islamismo se impõe na sociedade e na estrutura política universitária francesa, maior ironia da obra.

Essa islamização improvável se dá, em primeiro lugar, por uma fraqueza do próprio sistema político francês, pela falta de energia política, por assim dizer, de certas tendências no jogo do poder. A crítica parece ser diretamente direcionada às tendências de tolerância cultural tanto da esquerda quando das facções de centro-esquerda. Da fraqueza do sistema político diante de um inimigo infiltrado, na visão de Houllebecq, resultaria um ambiente de ascensão de um político muçulmano de fachada humanista e progressista, uma aposta improvável no esclarecimento do oriente. Mas a surpresa e o horror vai se anunciando no final e se dá não apenas nas jogadas de marketing político.

A conclusão aponta, talvez, para a mais sórdida característica humana e essa foi a maior ironia de Houllebecq, uma tacada de genial de um cinismo triunfante e que, a meu ver, foi um aspecto pouco compreendido pela crítica em geral (o livro não teve tão boas apreciações). Essa corrupção islâmica dos padrões e princípios iluministas que seriam o estofo dos ideais do ocidente não se dá pela corrupção financeira e sim pelo aliciamento dos profissionais que ocupam cargos importante tanto na universidade quanto em cargos públicos de entidades relevantes.

O aliciamento se dá pela proposta de ingresso no mundo islâmico com conversão declarada oficialmente, mas com alguns benefícios de tolerância para os intelectuais da Sorbone (uso social do álcool, garantia de privacidade). Esta adesão garantiria posições no novo establishment político islâmico e se completaria com a possibilidade da “poligamia”.

No processo de convencimento efetivado pelo líder do partido em ascensão o personagem de Houllebecq é apresentado à várias mulheres de tenra idade que, uma vez tomado o passo final em direção à conversão, se tornariam suas esposas, belas, prestativas e submissas. Na distopia de Houllebecq o estado não usa a força, todo o processo de submissão ocorre entre o supermercado a universidade e a cama.

(Eli Vagner Francisco Rodrigues é professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação - Faac - da Unesp de Bauru)

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias