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OPINIÃO

A implicação simbólica do imaginário - I

“Tudo é segundo a dor com que se olha” (Mário Benedetti)

O ser humano carrega uma racionalidade de ser simbo-lógico, mito-lógico, (des) humano estampado nas diversas expressões divididas entre o mito e o logos, o simbólico e o racional, dialeticamente retratados pelo excludente e o integrador. O mito define uma fase pré-racional do humano–que ironiza a deusa-razão – através da ingenuidade do racionalismo ilustrado nas formas mítico-mágicas tão vivas no cotidiano expressas em jornais através do horóscopo, o esporte, a música, as seitas e organizações sociais, formas simbólicas imbricadas pelo imaginário humano como produção de significações sociais. Tendo incorporado identidade própria, os signos não são mais vistos pelo ser humano como meras produções ou criaturas voltadas contra o criador mas enquanto característica própria da consciência mítico-mágica onde o signo incorpora o poder de direcionar as condutas, segundo Usener, em 1896, “excitabilidade do sentimento religioso, um conceito qualquer [...], o que nos chega como súbita visitação do acima”.

Lembrando que o nome do indivíduo não o representa na sua ausência, mas na conexão dos efeitos entre imagem e realidade, os quais são o indivíduo: “O mundo constitui uma realidade fechada em que prevalece a totalidade das formas e se obscurecem as características particulares. O mundo está animado por uma mobilidade incessante; sua característica principal é fugacidade” (RUIZ, 2004, p. 114). Nessas circunstâncias a subjetividade é um ente passivo ante a visão mítico-mágica – sob a qual a humanidade viveu a maioria de sua existência – neste império hegemônico da consciência sincrônica que unifica presente-passado-futuro numa experiência indissociável. O que foi é. E o que será também está no presente. Não existe uma perspectiva evolutiva da razão que anule esta tendência do distanciamento entre a pessoa e o mundo, uma nova dimensão simbólica capaz de mudar as consciências dos sujeitos e identidade dos grupos sociais.

O mito passa a participar e estruturar o modo cada vez mais racional da compreensão humana. É o momento das religiões estruturadas como crenças explicativas do mundo as quais substituem a sensibilidade mágica. A produção religiosa trama essa racionalidade explicativa, no conceito de Ruiz “uma simbologia implicante” (p. 118)- trespassada pela dimensão simbólica que estrutura os diversos saberes. Esse processo de criação social se dá em meio ao conflito da visão mítico-mágica frente ao lento amanhecer da consciência mitológica e então o simbólico deixa de lado o mágico e passa a integrar-se a um conjunto de produções marcadas pelo crescimento da racionalidade. Símbolo contrário ao mythos – que não significa mentira ou ficção, tampouco necessita demonstração, história, comprovação – o logos tem o sentido de reunir, contar. O mythos adquiriu significado de fábula, oposição ao verdadeiro – termo usado por Aristóteles – faz parte da religião cuja visão mítico-mágica confere argumentação lógica e coerência racional aos símbolos instituídos por crenças diversas.

A tese durkheimiana define que “a religião constitui o marco autocompreensivo da quase-totalidade das sociedades pré-modernas”, na tentativa de integração das práticas religiosas e na estrutura social, como a do Iahwismo que é, antes de mais nada, uma criação e dinâmica social. O processo de desconstrução do mítico-mágico aprofundou e alastrou nessa religião, muitas vezes, de modo violento. Por isso há que buscar entender as transformações históricas das visões mítico-mágicas, também enquanto modificações estruturais, econômicas, políticas e sociais. Permeada por conflitos permanentes a ambiguidade da convivência entre as visões mítico-mágicas e monoteístas é uma constante. A história conta do rei Saul que foi consultar um vidente sobre seu futuro – logo um rei de um povo essencialmente “de um deus só” – acudido pelas práticas da magia imbricada pela numerologia, o mítico-mágico e o teos-lógico. “Esta diferença mítico-mágica, simbologia, está direcionada num certo distanciamento lógico do objeto cultuado” nas diversas sociedades com tendências à desconstrução da visão mítico-mágica e produção de novas formas simbólicas e lógicas de autocompreensão (p. 128).

A religião, embora mantendo a dimensão do sagrado, propicia um certo distanciamento da deidade, provoca a dessacralização do objeto e sua consequente naturalização, de acordo com Marx Weber “o desencantamento do mundo” relativo e que nunca concluirá no trunfo definitivo da razão sobre o símbolo, tampouco na superação do mito pelo logos, de igual modo, o progressivo desenvolvimento do logos não provocou a superação do mito, afinal a dimensão mítica está implícita no desenvolvimento simbólico do humano, lembrando que qualquer formulação teórica é sempre uma forma mítica de significar o mundo do ser humano que é essencialmente mitológico. Reflexão ocidental o estudo do logos representa, infere ao termo symbolon importância sociológica, pois o ser humano, ao conferir um sentido às coisas, realiza uma juntura simbólica com o mundo, na concepção de Durand: “Todo signo que evoca, através de uma relação natural, algo ausente ou impossível de perceber”, no que Jung infere “ser os arquétipos ou funções do inconsciente que dão forma à existência do símbolo”, este, uma função da consciência carregada de “toda energia do espírito em virtude da qual um conteúdo espiritual de significado é veiculado a um signo sensível concreto e lhe é atribuído interiormente...” (CASSIRER, 1989, p. 163).

Porém nem a consciência pode delimitar tampouco o inconsciente pode impô-lo como determinação inexorável por ser o simbólico a manifestação da potencialidade criadora do imaginário que se restringe à significação social definida que confronta o ilimitado do imaginário com as determinações sociais vigentes naquilo que conhecemos, e, mesmo assim, impossível de ser conhecido de modo pleno, apesar de ser o que nos define como humanos. A separação do mundo nunca é absoluta, mas a fusão também não é total, pois o imaginário se manifesta como símbolo e logos, daí o símbolo não ser natural, por não ser exigido pela natureza do objeto, mesmo que dela se aproprie, nem a pura criação do sujeito. Por facilitar uma economia de esforços, o símbolo é arbitrário, prático e remete a um significado presente ou ausente, daí ser ele a realização dos arquétipos, enquanto estes são mediadores entre os esquemas, como a linguagem alegórica que não é privativa da poesia ou da literatura por abranger a totalidade da linguística que tenta explicar o mito sem esgotar seu sentido.

Qualquer formação social manifesta uma visão de mundo: “A sociedade existe como uma rede de representações que socializa sujeitos, sem determiná-los, e os insere numa forma de prática social” (RUIZ, 2004, p. 144) e mesmo a sua eufemização não exclui o sentido da vida que para na morte que nega a própria morte, afinal “a pálida morte bate igualmente nas choupanas dos pobres e nos palácios dos reis” (Horácio). Este, um simbolismo que implementa e restabelece o equilíbrio psicossocial, para Freud, um subproduto do processo de sublimação trespassado pela imagem originada a partir do conflito, ou, “uma forma enganosa e irreal de sublimar as repressões” tornadas distúrbios mentais os quais para Cassirer e Jung são a “doença mental ou perda da função simbólica”.

E o pulso, ainda pulsa!

(Antônio Lopes, escritor, filósofo, mestre em Serviço Social/doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás, mestrando em Direitos Humanos/UFG)

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