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OPINIÃO

Não esquecemos da nossa história

Geralmente os viajantes que chegam em Goiânia, ao saírem da rodoviária, passam pela Praça do Trabalhador. No local acontece a famosa Feira Hippie, a maior feira ao ar livre da América Latina. Hoje, entre os que passam pela capital e mesmo para os moradores da cidade, a Praça do Trabalhador é muito mais lembrada pela feira do que pelo monumento e símbolos que lhes deram esse nome.

No projeto inicial da cidade de Goiânia, a Avenida Goiás ligava a Praça Cívica à Praça do Trabalhador, local onde se encontrava a Estação Ferroviária. Essa Praça foi nomeada como Praça Doutor Americano do Brasil em homenagem ao escritor e médico que fez parte da história de Goiás. Local de grande aglomeração de trabalhadores que transitavam por Goiânia e cidades próximas, o local se tornou ponto de encontro para protestos estudantis e de trabalhadores.

Durante a década de 1950, o movimento dos trabalhadores no mundo inteiro ganhava muita força e em Goiás não era diferente. No norte do estado, essa foi a década da vitória dos camponeses de Trombas e Formoso sobre os latifundiários da região. Na capital, havia muitas lutas também, especialmente do movimento estudantil, como as tradicionais lutas contra aumentos de passagens de ônibus e também de aumento de ingressos em cinemas e teatros. Algumas das jornadas, entretanto, se destacam das demais e mostram a força do movimento estudantil e operário de Goiânia. Em 1959, por exemplo, em gigantescos protestos, os estudantes conseguiram derrubar o Secretário de Segurança Pública do Estado e escolherem um nome de sua confiança, uma vez que não aceitavam mais a repressão policial, que contava até com munições letais contra as marchas estudantis. A própria fundação da Universidade Federal de Goiás (UFG), em 1960, se deu com lutas dos estudantes, os setores mais conservadores eram contra a fundação da universidade, pois acreditavam que seria um “centro de subversão”.

É nesse bojo, de crescente influência política da esquerda, que os sindicatos se reúnem para pleitear a construção de um monumento na capital que marcasse a conquista dos direitos civis e trabalhistas. Pedro Ribeiro dos Santos, então presidente da Federação dos Trabalhadores na Indústria no Estado de Goiás (Ftieg), encabeçou a reivindicação. A ideia era mostrar a importância do trabalhador na construção da jovem cidade de Goiânia e, claro, de tudo o que a humanidade constrói, pois são das mãos dos operários e demais trabalhadores que se produzem todas as riquezas. O governador José Feliciano e o prefeito Jaime Câmara acataram o pedido dos sindicatos. Goiânia teria, então, um monumento que marcaria a força da classe trabalhadora. O local escolhido não poderia ser mais propício, dado o grande volume de trabalhadores que transitavam nas Avenidas Goiás e Independência além da Estação Ferroviária da época.

Para a construção do monumento foram escalados três profissionais: Farid Helou, um destacado engenheiro que cuidou do traçado urbanístico do local; Elder Rocha Lima, importante arquiteto goiano que lecionou na UFG e na Universidade Católica e foi perseguido pelo regime militar, tratou do projeto arquitetônico com cavaletes de concreto que exporiam dois painéis na altura dos olhos, formando uma galeria artística permanente; e coube ao renomado artista plástico Clóvis Graciano – cujas obras figuram em ruas, museus e coleções do Brasil e exterior – dar vida aos painéis.

Os dois painéis confeccionados em mosaico por Clóvis Graciano mostravam duas partes de uma realidade. De um lado ficava o painel que retratava A Luta dos Trabalhadores, do outro estava O Mundo do Trabalho. A parte do monumento que retratava o mundo do trabalho trazia algumas cenas com diferentes tipos de trabalho e trabalhadores. Inicia-se com os camponeses, retrata a partida do campo, do trabalho na indústria e da construção das cidades. O outro painel, que seguramente foi motivo de fúria maior dos grupos políticos reacionários, mostrava a luta dos trabalhadores, particularmente a Revolta de Haymarket pela jornada de trabalho de 8h diárias de 1886 em Chicago nos EUA, que deu razão ao 1º de Maio como Dia do Trabalhador. No painel podia ser observada a repressão policial com fuzilamento de uma manifestação operária com a morte de 11 pessoas, o encarceramento de oito líderes operários e o posterior enforcamento de quatro deles em praça pública. No entanto, como o painel também retrata, logo vem a reorganização da classe trabalhadora em novas revoltas e a declaração com punhos erguidos do triunfo de suas reivindicações.

Após a construção do monumento e a intensa mobilização e organização de protestos no local, a praça passou a ser conhecida pela população como Praça do Trabalhador. Ali se transformou no local de comemorações do dia 1º de Maio, assembleias de greves e concentração de manifestações políticas.

Lamentavelmente, o Monumento ao Trabalhador em sua plenitude teve vida efêmera. Com a violenta reação das classes dominantes à crescente força do movimento operário nas décadas de 1950-60, instalou-se o regime militar, cujo principal objetivo era debelar as classes trabalhadoras. Apesar da intensa luta de resistência contra o regime organizada por estudantes, operários e camponeses, o regime militar e suas visões políticas fascistas e obscurantistas se impuseram.

É nesse impulso de crescimento de forças políticas reacionárias e conservadoras que restaram escondidos e se justificaram inúmeros crimes contra indígenas, camponeses e trabalhadores urbanos. O regime militar surgira para prevalecer a dominação do latifúndio, da grande burguesia e manter a dominação imperialista, principalmente estadunidense, que não por acaso apoiou o golpe de 1964. Funcionários públicos, artistas e a intelectualidade progressista também foram perseguidos.

O obscurantismo, a dificuldade da classe dominante em lidar com as ideias opostas às suas e de sua necessidade de esmagar os pensamentos mais progressistas para manter o seu pensamento único ou, no máximo, dar espaço a pequenas contradições que não escapam do seu círculo de fogo da ideologia dominante, levaram à depredação e destruição do Monumento ao Trabalhador. Outras obras de Clóvis Graciano também foram vandalizadas no país durante o regime militar, assim como outros escritores, músicos e demais artistas encontraram extremas dificuldades para expor seus trabalhos.

No ano de 1969, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização de ideário fascista, lançou piche fervido nas pastilhas de vidro que formavam o monumento, destruindo-o. Naquela data, o prefeito de Goiânia era Iris Rezende, em sua primeira passagem pela Prefeitura. Não houve investigação para descobrirem os autores desse crime, tampouco houve qualquer ação pela recuperação dos painéis. Algum tempo depois, em 1973, as pastilhas foram raspadas, não foram reconstituídas. A gradual deterioração do monumento se encerrou em 1987, quando da iniciativa de prolongar a Avenida Goiás, formando a Avenida Goiás Norte. A mando do interventor Joaquim Roriz, a estrutura restante foi demolida por tratores e no local onde ficavam os pilares dos painéis restaram algumas palmeiras que marcavam o enterro do Monumento. Curiosamente, em 1990, após a destruição total do Monumento ao Trabalhador a praça foi oficialmente renomeada como Praça do Trabalhador.

Somente em 2003, quando da gestão de Pedro Wilson como prefeito de Goiânia foi constituído um grupo de trabalho para debater a reconstrução do Monumento, mas o projeto não foi levado adiante. Em 2016 o professor Pedro Célio Alves Borges, da Faculdade de Ciências Sociais da UFG e representante da instituição na Comissão Estadual da Memória Verdade e Justiça, apresentou uma moção no sentido de recomendar ao governador Marconi Perillo e ao prefeito Paulo Garcia a devolução do Monumento ao Trabalhador à cidade. Apesar da promessa de Marconi Perillo em disponibilizar os recursos para reconstrução do Monumento, a obra ainda não se iniciou. Pelas últimas ações de repressão a luta de estudantes e trabalhadores perpetradas pela Polícia Militar e Guarda Civil Metropolitana cujo comando maior é do atual governador Marconi Perillo e do novamente prefeito Iris Rezende, será necessário uma nova luta somente para devolver à cidade o seu Monumento e sua memória.

(Roniery Rodrigues Machado, mestrando em Direito Agrário pela UFG)

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