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OPINIÃO

O artesão

O Rinaldo tinha uma habilidade incomum para construir os próprios brinquedos. Tinha poucos objetos comprados em loja. A maioria dos caminhões, barcos e aviões que tinha haviam sido esculpidos por faca e lixa. O curioso era que nem tinha dez anos e idade. Mesmo assim, botava-se a construir coisas cada vez mais sofisticadas e ricas em detalhes.

Havia na fazenda onde morávamos uma serraria. Toco, ripa e pedaço de madeira não eram problema. As sobras e cacos das toras de peroba, aroeira e angico que ficavam jogadas ou seriam incineradas serviam para todo tipo de criação do “Rina”. Eu, sem habilidade alguma, ficava sentado por perto observando. Pedia, inclusive, para que me ensinasse o ofício.

- Rina, como você faz esses carrinhos?

- Fácil. Separo uns pedaços de pau e vou pregando uns nos outros.

- Eu tentei, mas acabei machucando a mão. Não achei assim tão simples.

- Veja como eu faço para você aprender.

Meus pais eram muito cuidadosos e não ficariam satisfeitos ao me ver, com uns sete anos de idade, manuseando facas, pregos e martelos. Então, eu mais observava o Rina com olhos na nuca. Daquela vez ele preparava um caminhão. Coisa, simples, me dizia. Simplesmente, não conseguia ver a situação com tanto otimismo.

Com uma tábua retangular mais ou menos larga, pregou em uma das pontas um quadrado e um retângulo. Aquilo seria a cabine. O restante da tábua foi sendo cercada por pregos que seria depois unidos por arame liso. Aquilo formaria a carreta. Poderia ser com ripas mais finas também, mas naquele modelo de caçamba não serviria. Ele queria ver o gadinho de maxixe sendo transportado na caminhoneta que cortaria as estradas improvisadas no quintal com enxada.

- Como a gente faz as rodas, Rina?

- Você tem chinelo velho, descartado, que não vai usar mais?

- Tem um par lá que estourou a correia.

- Serve para a gente. Busque para mim.

Fui em casa e peguei as Havaianas arrebentadas. Estavam descartadas debaixo da pia, em meio às garrafas de pinga que os peões bebericavam no intervalo do trabalho. Tinha a cor azulada de um lado e um furta corta meio amarronzado onde antes era puro branco. Era um solado que, embora não fosse mais tão largo, daria para o gasto.

O Rina pegou uma caneta e fez um círculo no solado de borracha. Com habilidade, cortou a figura geométrica com faca. Depois, sobrepôs esse pedaço como molde para recortar outros três idênticos. Na base da tábua daquela caminhonete de madeira, fez uma estrutura de pregos com arame que servia de eixo. Dizia que estava com preguiça de fazer um tampo madeira para dar mobilidade ao veículo em curvas.

Não parecia tão complicado. Com aquela faca, ia riscando vincos na madeira, desenhando janelas, capô e portas. Era bastante rústico, mas funcionava. Eu, sem nenhuma vocação para artesanato, ficava babando no maquinário que o Rina ia construindo com suas próprias mãos.

Ao longo daqueles anos de meninice, o Rina foi se tornando um grande empresário agropecuário ficcional. Já havia construído colheitadeira, caminhões, carros esporte, navios, aviões e um discreto helicóptero. Com alguns tijolos de barro cinza havia erguido o centro de seu império sob a sombra de um pé de amora.

Eu olhava com indisfarçável admiração pela criatividade do Rina. Quisera eu ser parecido. Até conseguia imitar a habilidade, mas no papel. Desenhava e recortava. Quando tentava executar os projetos, pequenos cortes e marteladas no dedo tomavam-me o entusiasmo. Embora tivesse brinquedos comprados em loja, nenhum chegava sequer perto das carretinhas de ripa e chinelo do Rina. Bons tempos.

(Victor Hugo Lopes, jornalista)

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