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OPINIÃO

Pólvora

Não há consenso estrito sobre a total inexistência de greves no setor de fabricação de armamentos. Nas investigações de Saramago quando da redação de seu inacabado libelo, e inédito até um par de anos após sua morte, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, o autor defende tal narrativa histórica. Após algum tempo dedicado de minha parte à apuração mais minudente do tema, para além das querelas em torno do tipo de ação colectiva no interior de fábricas, levada a cabo por trabalhadores e trabalhadores das mais variadas origens e com as mais plurais e diversas perspectivas culturais e teleológicas, que se possa designar ou não pela palavra “greve”, só consigo constatar que se greves nesse específico setor da produção houve, muitas por certo não foram. Evidência mais ou menos curiosa e que me investe de fortes razões para salientar, se não considerar tal ocorrência obra de um acaso metafisicamente improvável, a peculiaridade deste setor no que concerne ao seu papel na reprodução da lógica global vigente.

Segundo dados correntes, o primeiro relato de um protótipo de canhão data de 1126. Tal como conhecemo-lo classicamente, com estrutura metálica, como estes dos filmes de pirata, 1290. O modelo de pólvora primitiva degastava demasiado e aceleradamente os corpos das armas nas quais era utilizada, de modo que a vida útil dos canhões era relativamente breve e, ato contínuo, o uso da pólvora restringia-se a estes quantos trambolhos de peso titânico e de suado manuseio.

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Não posso senão esboçar um misto de perplexidade e admiração por aqueles que, num dado momento do tempo e do espaço, pensaram: “e se colocarmos uns quantos punhados deste pó preto dentro de um cano, com um peso adiante e atearmos fogo à porra toda com a embocadura direcionada àqueles tipos ali do outro lado?”. E sobre esse singelo ato muito se produziu em termos de imaginação ficcional (e outras vezes nem tanto) no atinente às descrições e, mais recentemente, encenações fílmicas, sobre o confuso ato da guerra, existente desde tempos imemoriais e bastante anteriores à própria pólvora.

Como a inventividade não possui limites, ainda que muitas vezes disso não tomemos nota, com o advento das formas mais modernas de pólvora, que mitigaram o desgaste dos materiais com os quais entravam em contato e, também, eram de mais facilitado manuseio, pensaram as pessoas que poderia ser agora boa ocasião de carregarmos todos canhões às costas e nas algibeiras das calças. É a alvorada dos mosquetes.

A declaração estadunidense de independência caracteriza como direito inegociável a possibilidade do armamento geral da população. O Manifest der Kommunistischen Partei (Manifesto do Partido Comunista), que um importante historiador do século XX caracterizou como o mais influente texto político desde a declaração dos direitos do cidadão, diz o mesmo, com o acréscimo da dissolução do exército e da polícia formais. Ambos os casos demonstrações de que, em contextos relativamente distintos e com horizontes bastante diferentes, não é incomum pensar que a vida é uma grande guerra e que a liberdade muitas vezes se paga com sangue. Ergo, não consideraria irônico, mas talvez prova cabal e inconteste da grande poetisa que pode ser a história, que a pólvora tenha sido acidentalmente descoberta por alquimistas que buscavam o elixir da longa vida.

No fim, na súbita incapacidade de, a despeito dos meus mais honestos e industriosos esforços para terminar de maneira melhor acurada, bela e arrojada esse pequeno tratado, sinto-me tão somente tentado a ir na contracorrente daqueles que aquiescem uma ideia bastante corrente de que, ao longo dos anos e com o avanço geral do “progresso civilizatório” a humanidade tenha se acovardado. Para além, envergonhadamente, de não me molestar demasiado a debilidade estilística do texto. Ora, tenha piedade de mim, que disseste que a proposta era precisamente algo escrito mais a quente. Devaneei. Sigamos.

Creio ser isto, a ideia de que somos hoje acovardados, esquecermo-nos da crua realidade de que, todo santo dia e mesmo agora enquanto escrevo, estamos a ir a guerras, a investir contra outros povos, a assassinar, a provocar o genocídio, a fazer uso da pólvora e de tantos mais inventos bélicos e destrutivos de toda sorte contra toda espécie de gente e de sociedades. A questão que se põe, segundo vejo, é menos sermos ou não acovardados e mais “por quem fazemos isso tudo”.

Por ocasião de uma proposta literária feita por Carolina Duarte, uma pessoa muito especial.

(Ian Caetano é formado em ciências Sociais pela UFG e mestrando no Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro)

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