E o Zezinho que corria em nosso socorro, teve que retardar um pouco em dar-nos a sua ajuda, pois teve que, primeiro, desalagar a sua canoa, o que o fez de maneira competente e com presteza.
Uma vez concluída a operação de salvamento, as mulheres se dirigiam para a casa da solidária e de elevado espírito humanista, a Ritinha, que ficava ali mesmo na parte superior do largo, para ver o que podia ser feito quanto à troca das roupas molhadas por outras emprestadas, - limpas e secas.
Enquanto isso, nós, os homens, fomos tirar a água do batelão e procurar os remos. A essa altura, barco e remos já estavam bem abaixo do lugar do naufrágio, levados pela correnteza. Conseguimos botar tudo em ordem, e atracar o barco no barranco, ali mesmo, próximo, para facilitar a todos, no retorno.
E, mais uma vez, servindo-me da boa memória da Lourdes, fomos à casa do ‘seu’ Manoel Pinto, que tinha uma filha amiga das meninas, a Ritinha, esta foi arranjar roupa enxuta e limpa. Nós, homens, secamos a roupa no próprio corpo, naquele sol seco e sem a umidade do período chuvoso. Foi bem rápido.
Esse episódio, que não deve ter durado mais que uns 20 a 30 minutos, para nós, envolvidos no incidente, parece que foi de uma duração bem mais prolongada. Como a juventude tem fôlego e disposição para enfrentar as adversidades e, dependendo delas, uma vez passadas, até com desprezo, a nossa rotina continuou. Apenas demoramos mais tempo, porque as meninas - minhas irmãs e suas amigas - tiveram tempo de trocar de roupa, emprestada, enquanto as suas estavam lavadas e secas, o que não demorou muito. Enquanto a roupas secava, fomos às mangas, fizemos uma boa colheita que compensou todo aquele susto.
Lá, em Conceição do Araguaia, já corria a notícia da “tragédia”, e ‘Madrinha’, nossa bondosa Madrasta, já até conjecturava, quase tinha certeza de que o pior teria acontecido, era com a Vivi. Todos estavam muito aflitos até chegarem notícias verdadeiras, sem quaisquer sensacionalismos. Com acontecimentos semelhantes, as notícias são as mais desencontradas. E nós estávamos, a essa altura, dos mais contentes com o final feliz, e tudo já era graça. Era gente caçoando daqueles que mais sofreram, mas que, agora, podiam rir. Tinha sido mais um dia de aventuras que só acontecem com os jovens naquela idade, daqueles tempos e naqueles rincões que não dispunham de muitos divertimentos.
Apesar de seus parcos recursos financeiros, Papai não se descuidava de nossa saúde bucal e corporal. Assim é que sempre nos mandava ao Dentista, com regularidade. Essa preocupação, infelizmente, não era da maioria dos pais daquela região. Até mesmo algumas famílias mais endinheiradas não nutriam essa saudável preocupação. Era questão de serem ou não pessoas evoluídas. Papai, apesar de seus modestos estudos, era uma dessas pessoas privilegiadas, estava sempre à frente de seu tempo, em muitas coisas e procedimentos. A saúde bucal era uma de suas preocupações básicas. Quando eu ia ao Consultório para o tratamento bucal, eu tinha muito medo de tudo aquilo, - motor, anestesia, agulha própria para extirpar as cáries, etc., não tinha muita pressa de ser atendido. Então, eu ficava horas na sala de espera, ‘negociando’ a minha vez, com alguns outros pacientes, de preferência homens que fossem fumantes. É que a moeda de troca, da vez ou lugar, eram as carteiras de cigarro vazias. Naquela época, a gente brincava com essas carteiras de cigarros, de diversas marcas e cores, consequentemente que variavam de acordo com a marca do cigarro, e atribuía-se a cada uma seu respectivo valor monetário. As carteiras eram desmanchadas, dobradas as laterais, e ficavam parecendo uma cédula de moeda verdadeira. E com aquele ‘dinheiro’, a gente fazia ‘negócios’ - compra de alimentos e outras coisas mais. Esse ‘negócio’ a que me refiro era, também, de ‘mentirinha’. Tínhamos um amigo que montava um ‘comércio’ ali mesmo nas calçadas, e ali mesmo ‘vendia’ mercadorias de brincadeira. Era uma pequena casa, móvel. ‘Vendiam-se sucos, balinhas, e outras guloseimas. Tudo coisa pequena. E a gente se compenetrava naquelas supostas ‘transações’, que, para nós, eram de verdade. Nesses consultórios, falava-se muito no hábito, no vício de fumar. E aqueles senhores diziam-me que aquilo não compensava. Que eles continuavam fumando, porque já estavam escravos dele. Aconselhavam que eu não aprendesse a fumar, pois era muito doentio. Estava ainda em tempo de não aprender. Como eu procurava ouvir os mais velhos, porque dali vinha quase sempre muita sabedoria, cheguei à conclusão de que não podia continuar tentando a aprender a fumar. E que bons conselhos foram aqueles! Por isso, instintivamente, acatei-os, no que muito ganhei, nos hábitos e na saúde. Quantos hábitos deploráveis eu vi, dali para a frente! Pessoas com quem eu convivi, que o fumo lhes estragou a vida, a saúde. Pessoas que muito sofreram por causa desse funesto vício.
Não posso deixar de, aqui, registrar o interesse que o Governo Federal tinha na proteção aos indígenas, através de um órgão oficial denominado ‘Serviço de Proteção aos Índios, conhecido pela sigla ‘SPI’, nacionalmente identificado. Eu mesmo conheci, em Conceição do Araguaia-PA, o senhor Miguelzinho, incumbido de dar apoio às comunidades indígenas, mormente as nações ‘Carajás’ e ‘Caiapós’, como servidor daquele órgão, naquela região, bem como a outras tribos de outras regiões do Estado do Pará e do alto Xingu. Ele trabalhou muito tempo com aqueles índios, e era de nossa cidade. Ele tinha por aqueles silvícolas verdadeira obsessão de carinho. Dava-se muito bem com esse trabalho. Aquilo era seu mundo. Vivia embrenhado naquelas matas, convivendo com aquela gente selvagem. Ele vestia a camisa daquela sua função. Parece até que ia além do simples vínculo empregatício. Ele se considerava verdadeiro patrimônio daquela instituição. E realmente o era. Mas o governo não pensava bem assim. Tanto que o demitira ou o aposentara sem maiores explicações. Aquele seu afastamento compulsório foi, para ele, como que uma morte. Ele não se conformava. É como se lhe tivesse tirado o peixe para fora d’água.
A ‘Corta’ e ‘Dr.Albertino’ - O Governo sempre teve um grande desafio - a navegação do Rio Araguaia. Havia imenso interesse quanto à ‘navegabilidade’ do imenso Rio Araguaia. Um Rio muito largo, porém um tanto raso e, por isso mesmo, caracterizado por inúmeras cachoeiras de porte, bem como inúmeros ‘travessões’ (pequenas cachoeiras). Formava muitas praias na época da seca, por ser um rio de média profundidade. Seria considerado navegável para embarcações durante as cheias. Durante a seca, é o rio das lindas praias infindáveis, para deleite de numerosos turistas de todo o País.
Pouco depois de nossa chegada, a Conceição do Araguaia, chegou por lá um senhor de nome Dr. Albertino. Um senhor de estatura alta, corpulento, de boa aparência, fala mansa, e parecendo bem preparado. Tanto é que se dizia chamar ‘Doutor Albertino’. Trazia de carga diversos rolos de cabos de aço, enrolados em imensos carretéis. Dizia que era material para ser utilizado no Rio Araguaia, para melhorar a sua navegabilidade. Parece que falavam até em dragagem daquelas areias brancas e abundantes, que, durante o período da seca, transformavam-se em nossas praias paradisíacas.
Anteriormente, naquele rio magnífico, já havia sido experimentada a sua navegabilidade, desde a atual Aruanã, - antiga Leopoldina, nome dado àquela localidade em homenagem à Sua Alteza Imperatriz Dona Leopoldina, esposa do Príncipe Dom Pedro I, pelo então jovem Bacharel em Direito José Vieira Couto de Magalhães, Presidente da Província de Mato Grosso. Como houvesse passado pela Província de Goiás, quando nomeado, aos 26 anos de idade, resolveu fazer estudos quanto à possível navegabilidade daquele Rio - o Araguaia, com o fim de promover a integração daquela Província do Centro-Oeste, portanto, da região interiorana ao litoral deste imenso País, com a bela cidade de Belém, Capital do Estado do Pará. Nos estudos preliminares, com o auxílio do Engenheiro Francês Ernest Vallée, chegou-se à conclusão de que a navegabilidade do grande Rio era não só possível, como recomendável. Para tanto, adquiriu-se um navio a vapor de uma extinta Companhia de Navegação do Alto Paraguai, fazendo-o descer pelos Rios Cuiabá, São Lourenço até a barra do Piquiri. Aí, desmontou-o, e suas peças foram colocadas em 19 carros de bois e levadas até o Porto do Itacaiú, já no Rio Araguaia, a 30 léguas da Cidade de Goiás, Capital da Província. E a 29 de maio de 1868, foi batizado com o nome ‘o Araguaia’, e colocado em funcionamento. E nessa primeira viagem, o governador idealizador fez parte da histórica tripulação, e percorreu o trecho que iria fazer parte daquela pioneira estrada fluvial de mais de 600 Km, compreendendo o trecho de Aruanã a Belém do Pará.
Um ano mais tarde, a Companhia de Navegação do Araguaia e Belém do Pará, liberava aquela notável nota fluvial ao público - via de regra ribeirinhos - mantendo-a por mais de três décadas, ou seja, até o início do Século XX. E 50 anos depois, a navegabilidade daquele majestoso Rio continuava uma obsessão. Isso ainda lá nos idos de 1950, 1960. E por que não dizer, até hoje! Porém, para torná-lo navegável, no meu entender de leigo, seria necessária a construção, em quase todo o seu percurso, de várias barragens, eclusas, e o consequente aumento da profundidade do seu canal, o que resultaria na extinção de suas encantadoras praias, dádiva da natureza por estas bandas, e motivo de muito orgulho dos centroestinos e nortistas. Por lá, o Dr. Albertino ficou muitos anos. Chegou até a ser proprietário rural. Comprou uma pequena propriedade de Papai, pela qual se passava para ir-se, a pé, ao ‘Pé de Buriti’. Mas, posteriormente, passamos a transitar por outro roteiro, mais fácil. Eu só sei dizer que, durante todo aquele período que passei em Conceição do Araguaia, nenhum serviço foi realizado ou, pelo menos, concluído, nesse sentido. Ele nos dizia sempre que estava esperando uns Engenheiros para começo dos trabalhos. E esse dia nunca chegava. Os cabos só não enferrujaram porque eram de aço, cobre ou alumínio, mas já estavam bastante danificados e precários. E acredito que não serviam para mais nada. E o Dr.Albertino, não passou de um pequeno sitiante. Era até compadre de Papai. Tinha um bom relacionamento na sociedade e com e com a nossa família.
‘O Problema da Malária’ - Por ser aquela uma região muito insalubre, o Governo estava sempre atento no combate aos causadores de moléstias. Uma dessas doenças que estava sempre provocando endemias, era a funesta malária. Era um combate sistemático. Era uma região de muita mata e água abundante.
Um desses efetivos que estava sempre por lá, aliás, que por lá morava, era o senhor Milton. Deste, eu me lembro bem, porque, nas suas folgas, ele costumava ser o aplicador de injeções nas pessoas. E a gente tinha sempre contato com ele. Era o filho do senhor Miguelzinho, do SPI - Serviço de Proteção aos Índios.
Era uma doença que causava muito mal, e que até acometia a muitos daquela agente do norte de nosso grande e rico país, também conhecida como maleita.
Eu não fui uma exceção. Apesar de morar na cidade, também fui vítima daquela maldita moléstia. Só que em grau mais suave. Ela era mais impertinente e persistente, e por que não dizer, mais perigosa, nas matas ainda virgens, daqueles Estados do norte: Pará, Amazonas... Muita mata, muita água.
Naqueles dias, eu estava com o corpo um tanto indisposto e, sobretudo, quente. Eu ia me agüentando. A gente não clamava por pouca coisa. E mesmo assim, naquele dia, resolvi ir pegar umas mangas numas taperas - antigas moradas, já abandonadas - e onde ainda existiam muitos pés de manga e jambo. Era na região sul. Chamava-se ‘justo’. Era um local frio, com nascentes d’água e um mangueiral, com alguns tipos delas.
Enchi um saco de mangas, quer maduras, quer ‘de vez’. Chupei um bocado delas, e já sentindo um calafrio anormal, o corpo em brasas, o rosto queimando. E mesmo sabendo, pelos mais velhos, que manga não combina com febre, eu já me sentindo com todos aqueles sinais da maldita malária, continuei saboreando as doces mangas, muito gulosamente, como sempre. Após me deleitar com aquela fartura, é que enchi aquele grande saco com as belas frutas, apetitosas mesmo! A seguir, parti para a cidade. Morávamos no Centro. O ‘Justo’ ficava na periferia, fora do perímetro urbano, lado Sul. Quando coloquei aquele pesado fardo nas costas - eu, com apenas meus 15 anos, naquele estado febril - não conseguia sequer caminhar em linha reta. Percebi, então, que eu não me encontrava em estado normal. Jamais me tinha acontecido coisa igual. E esse ziguezaguear foi constante em todo o meu percurso. A estrada e a rua eram estreitas para mim. No meio do caminho, as mangas começaram a cair, acho que o saco estava muito cheio, e elas foram caindo em quase todo o percurso. Eu não dava conta de baixar e pegá-las. Caso tentasse, eu cairia, e não conseguiria levantar-me.
Assim, eu fui deixando as mangas pelo caminho afora. Ainda bem que o saco ia ficando cada vez mais leve. Foi minha salvação. E aos trancos e barrancos, cheguei em casa. O saco estava lá pela metade.
Lá em casa, relatei a ocorrência a minhas irmãs e à minha ‘Madrinha’ que, muito atenciosa, como sempre, me medicou e, assim, me aliviou. Parece-me que me ministrou um comprimido de um medicamento de nome ‘Aralém’. Era um dos medicamentos, para aquela doença tão infeliz, que vitimou tantas pessoas, pais de família, seus filhos que não obtinham tratamento imediato e adequado. Dentro de poucos dias, eu já estava salvo daquela insidiosa moléstia que tanto me atazanava e ainda maltrata, - embora em bem menor escala, é claro, os nortistas, sertanejos especialmente. Uns habitantes das cidades tem um tratamento mais efetivo, como requeira cada caso. Eu tive a feliz sorte de viver naquela região, e de ter sobrevivido aos ataques daquela insidiosa moléstia, e de haver usufruído o privilégio de estar, hoje, aqui, podendo contar esta estória com final feliz, ao contrário de tantos outros desafortunados.
Parte curiosa de minha trajetória foram as ‘diversões’ que alegraram minha adolescência. Eu era um garoto que tinha o privilégio de usufruir variadas ‘diversões’. Vivia para estudar e, nas horas vagas, das lidas já mencionadas, eu procurava dar-me um pouco de lazer. Afinal, a gente ainda na adolescência, tinha uma visão da vida mais precoce, pelo trabalho. E assim, muito cedo chegavam os anseios pelo desfrute da vida.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbosa@uol.com.br)