- Historiador frisa que ascensão de José Sarney, em 1985, foi golpe político apoiado por Leônidas Pires
- Doutor em História fala que impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, trata-se de um golpe parlamentar
- Pesquisador afirma que impeachment de Fernando Collor havia consenso generalizado entre forças políticas
- Professor diz que Aécio Neves não é herdeiro de Tancredo Neves e que FHC e Lula mantêm legados do 'velho'
Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe, diz o doutor em História e professor da Universidade Federal de Goiás David Maciel. O pesquisador refere-se à queda de Dilma Rousseff. O pesquisador vê identidades entre os casos de Honduras, com Manuel Zelaya, em 2009, e de Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012. Crítico, aponta que Nicolás Maduro corre sério risco de ser afastado do poder, na Venezuela. O escritor enxerga uma onda conservadora na América Latina: Argentina, Peru, Bolívia... David Maciel aponta as semelhanças e identidades entre a deposição de Fernando Collor de Mello, em 1992, e a da líder petista. Que não está consumada, explica. Estudioso da ditadura civil e militar no Brasil, a transição para a Nova República e os tempos sombrios de Fernando Collor de Mello, ele diz a ascensão de José Sarney foi um golpe político que teve como fiador o general Leônidas Pires Gonçalves.
Perfil
Nome completo: David Maciel
Idade: 50 anos
Formação - graduação em História pela PUC-GO, mestrado e doutorado em História pela UFG.
Instituição que leciona: graduação e pós-graduação da Faculdade de História da UFG
Livros publicados: A argamassa da ordem: da ditadura militar à Nova República (1974-1985). São Paulo: Xamã, 2004;
De Sarney à Collor: reformas políticas, democratização e crise (1985- 1990). São Paulo: Alameda; Goiânia: Funape, 2012.
Projeto de novo livro: Marxismo, História e Política (Marx, Engels, Lênin, Gramsci, Florestan Florestan Fernandes); Governos do PT, Neoliberalismo e Hegemonia burguesa no Brasil (2003-2016).
Leia na íntegra da Entrevista
Diário da Manhã - O que há de 1992, no impeachment de Fernando Collor de Mello, na queda, em 2016, de Dilma Rousseff?
David Maciel - Com exceção do rito jurídico, não há mais nada, pois são situações bastante diferentes. No impeachment de Fernando Collor havia um consenso generalizado entre as forças políticas, organizações e movimentos sociais, além da opinião pública em defesa de sua saída. Mesmo a grande mídia acabou aderindo ao impeachment. Além disso, a crise política que levou à queda de Collor tinha por fundamento as dores do parto do projeto neoliberal no Brasil. Ou seja, a sua implementação gerou forte descontentamento tanto entre os trabalhadores, quanto entre diversas frações do capital. Por conta disso, tornou-se possível um acordo entre o PT, o PSDB e setores importantes do PMDB em favor do impeachment. Agora, a situação é diferente, pois apesar do projeto neoliberal estar novamente em crise, mesmo na versão moderada adotada pelo PT, há uma profunda divergência entre as classes burguesas e os trabalhadores acerca de sua continuidade. Se de um lado há um consenso burguês generalizado em defesa da aplicação de uma versão extremada do neoliberalismo, entre os trabalhadores há uma clara oposição a esta perspectiva, com acirramento da crítica e da resistência ao mesmo. Uma das razões para que o governo Dilma Roussef se isolasse de suas bases e perdesse grande parte do apoio que possibilitou sua reeleição foi justamente a insistência na aplicação de um ajuste fiscal e de medidas tipicamente neoliberais, que iam na contramão do que as manifestações populares e as próprias eleições de 2014 indicaram como perspectiva popular predominante. Isto explica porque no atual processo de impeachment a maior parte dos sindicatos e movimentos sociais, o PT e os demais partidos de esquerda e as forças políticas mais próximas dos trabalhadores se posicionam contra o impeachment, enquanto o PSDB, a maior parte do PMDB, os partidos de direita e as organizações empresariais, além da grande mídia, são a favor.
DM - Com José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer, sem votos, o PMDB chegou ao Palácio do Planalto. Existem identidades entre esses processos históricos?
David Maciel - Em termos formais sim, pois nos três casos os vices presidentes assumiram o governo na vacância do titular, mas se no caso de Itamar Franco o processo foi legítimo, nos casos de José Sarney e Temer, não. Isto porque a ascensão de Sarney foi irregular, pois quem deveria assumir era o presidente da Câmara, Ulisses Guimarães. Apesar da participação decisiva de Ulisses na grande composição política que viabilizou a eleição indireta de Tancredo Neves, sua ascensão à presidência, mesmo que interinamente (pois ele deveria convocar novas eleições em caso de impossibilidade definitiva de Tancredo), poderia gerar descontentamento entre os dissidentes do governo militar que agora apoiavam a oposição, caso da Frente Liberal, além da própria resistência de determinados setores militares. Vale ressaltar ainda que a ascensão de Ulisses à presidência o impediria de concorrer à próxima eleição presidencial, o que inviabilizava seu projeto político e tornava letra morta o acordo entre ele e Tancredo, segundo o qual Ulisses o apoiou agora em torno do seu apoio no futuro. Portanto, o principal fiador da ascensão de Sarney foi aquele que atuou como a verdadeira "eminência parda" durante todo o seu governo, o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército. Neste sentido, a ascensão de Sarney foi um golpe político. Guardadas as diferenças históricas, no caso atual o processo também se configura desta maneira.
DM - Florestan Fernandes diz que a eleição, no Colégio Eleitoral, e depois, a posse de José Sarney, abortaram a revolução democrática que poderia ter ocorrido com as 'diretas já'. O senhor concorda?
David Maciel - Sim, pois tratou-se de uma grande conciliação entre as forças políticas dominantes e entre as classes burguesas, viabilizando um governo conservador que conduziu a transição política no sentido de preservar o máximo possível a institucionalidade política autoritária criada durante a Ditadura Militar. Neste sentido, a possível revolução democrática anunciada pelas "diretas" deu lugar a um processo de reforma da autocracia burguesa. Nos termos de Florestan Fernandes, a autocracia burguesa, cujo apogeu ocorreu durante a Ditadura Militar, configura um tipo de Estado que historicamente não reconhece os trabalhadores e suas organizações como sujeitos políticos, capazes de colocar livremente e de maneira autônoma suas demandas e interesses diante do aparelho estatal e das classes burguesas sem serem objeto da cooptação política e/ou de um tratamento repressivo. Diante disto, criou-se uma democracia limitada, pois estruturada por dentro por mecanismos de cunho autoritário, oligárquico e fascista. Ou seja, a perspectiva antiautocrática presente na campanha das "diretas" foi contrariada por um processo político que preservou e reformou a autocracia burguesa, não a aboliu.
DM - Por que a eleição de Tancredo Neves e José Sarney é classificada como uma transição pelo alto?
David Maciel - Justamente por que se baseou numa ampla conciliação política entre a oposição moderada e os setores dissidentes do governo militar, com a aceitação do próprio governo militar que saía, em torno de uma perspectiva de preservação, não de abolição, da autocracia burguesa e de negação da perspectiva democrática e popular.
DM - O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao STF a prisão de José Sarney, personagem de seu livro. A ação tem fundamento? [O STF negou}
David Maciel - Para além do descontentamento de Sarney com as iniciativas da Operação Lava-Jato, sugerindo algum tipo de intervenção política no sentido de redimensioná-la ou mesmo encerrá-la, as conversas gravadas por Sérgio Machado sugerem a ocorrência de transferência de recursos, de ajuda financeira, de tentativas de obstrução da justiça. o que indica, no mínimo, a necessidade de aprofundamento das investigações e a adoção dos procedimentos judiciais cabíveis.
DM - Cassado, Fernando Collor, personagem de sua obra mais recente, voltou a desviar recursos públicos, como demonstrou a Operação Lava Jato. Como ele entra para a História Republicana?
David Maciel - Fernando Collor é um político conservador, de abrangência regional, típico representante das oligarquias alagoanas, formado politicamente em conformidade com a autocracia burguesa vigente historicamente no Brasil, ou seja, personalista, autoritário e patrimonialista. Só chegou à presidência da República por conta de uma situação histórica muito particular, ou seja, de uma crise da hegemonia burguesa. Uma crise de hegemonia onde, se de um lado havia consenso entre as classes burguesas em torno da necessidade de preservar o máximo possível a autocracia burguesa, não havia unidade acerca do programa econômico a ser adotado. Isto causou um curto-circuito na representatividade política dos partidos dominantes (PMDB e PFL) diante das classes burguesas, fragmentando suas alternativas eleitorais e abrindo caminho para figuras de pouca expressividade como Collor. O avanço dos movimentos sociais e das organizações dos trabalhadores favoreceu a ascensão das candidaturas de esquerda de Brizola (PDT) e Lula (PT), tornando real suas chances de vitória nas eleições de 1989. Collor tornou-se o candidato das classes burguesas e das forças conservadoras porque conseguiu passar a imagem de um "salvador da pátria" não envolvido com um sistema político corrompido e com um governo desgastado, ganhando a adesão popular e constituindo-se no anti-Brizola, no primeiro turno, e no anti-Lula, no segundo. No entanto, uma vez no governo evidenciou todos os seus limites enquanto articulador político e liderança política, tentando implantar na marra um projeto neoliberal extremado que agravou a crise econômica, social e política, ressaltou ainda mais seu comportamento autoritário, personalista e patrimonialista e unificou as mais variadas e divergentes forças políticas e sociais contra si. Seu retorno à política restabeleceu sua verdadeira dimensão na história política brasileira, qual seja, a de uma liderança regional, de perfil conservador e práticas políticas fisiológicas, como indicam as atuais investigações contra ele. Na crise atual é real o risco de que nas próximas eleições emerja um novo "salvador da pátria", com as mesmas dificuldades de articulação política que Collor, agravando a crise e criando a possibilidade de retrocessos autoritários.
DM - Aécio Neves [PSDB-MG] seria o herdeiro de Tancredo Neves?
David Maciel - Em termos políticos não, pois o que caracteriza a trajetória de Tancredo Neves é a enorme capacidade de agregar forças políticas divergentes, conciliar os interesses dominantes e ainda assim obter apoio popular para a estabilidade política e a defesa da ordem social. Aécio não tem nada desta capacidade, o que se evidencia em seu comportamento intransigente e ao mesmo tempo errático no atual processo de impeachment e que o fez ser engolido pela dinâmica política, perdendo o protagonismo que havia conquistado com as eleições de 2014. Em sentidos distintos e de maneiras diferentes, na história do Brasil recente os verdadeiros herdeiros políticos de Tancredo são Fernando Henrique e, principalmente, Lula.
DM - O impeachment, sem crime de responsabilidade, de Dilma Rousseff, não é golpe?
David Maciel - Sim, porque sem crime de responsabilidade o impeachment não se justifica juridicamente. Portanto, o problema é político, ou seja, o impeachment foi o caminho escolhido pela oposição de direita, pela grande maioria do PMDB, pela grande mídia e pelo conjunto das classes burguesas para interromper um governo eleito, porém incapaz de refundar a política de conciliação de classes que fez as glórias do lulismo. Depois das Jornadas de Junho de 2013 e do fracasso das políticas anticíclicas tomadas nos anos anteriores para evitar a contaminação ainda maior da economia brasileira pela crise mundial, a perspectiva de continuação e aprofundamento do programa neoliberal e ao mesmo tempo de manutenção dos movimentos sociais e das organizações políticas dos trabalhadores sob controle redundou em desgaste, isolamento político e perda de legitimidade. O que para o grande capital tornou o governo petista dispensável, depois de 13 anos de serviços prestados em favor da hegemonia burguesa no país.
DM - O que há de identidade entre Honduras, 2009, Paraguai, 2012, e Brasil, 2016?
David Maciel - Guardadas as enormes diferenças de grandeza econômica e importância política, os três casos se assemelham na medida em que os governos eleitos de Manuel Zelaya, Fernando Lugo e Dilma Roussef contrariaram, mesmo que parcialmente e em graus variados, os interesses do capital internacional, particularmente do capital financeiro, e se comprometeram com políticas sociais compensatórias voltadas para os pobres. Esta situação levou o capital internacional e as classes dominantes nativas, com apoio de setores das classes médias, a patrocinarem golpes jurídico-parlamentares encaminhados por dentro da própria institucionalidade, dispensando assim o fenômeno do golpe militar típico da história latino-americana. É importante ressalvar que em Honduras os militares tiveram um papel importante na deposição do presidente, apesar de não assumirem o poder. No caso de Manuel Zelaya tratou-se de uma liderança oligárquica que buscou aliar-se à ALBA e ao chamado bloco bolivariano (Venezuela, Bolívia, Equador e Cuba), assim descontentando os interesses imperialistas. No Paraguai tratou-se de derrubar um governo fortemente vinculado aos movimentos sociais e com uma perspectiva pós-neoliberal. No Brasil, o golpe jurídico-parlamentar está em curso, apesar de ainda não podermos afirmar que está consumado plenamente, haja vista os baixíssimos índices de popularidade do governo Temer por conta da pauta neoliberal extremada que defende, e sua própria incapacidade em governar, surpreendendo os que achavam que bastava a queda de Dilma para que a estabilidade política fosse reconquistada.
DM - A Venezuela é a bola da vez?
David Maciel - Tudo indica que sim, apesar do governo Nicolás Maduro ainda contar com o apoio expressivo dos movimentos sociais, dos pobres e de setores importantes da burocracia civil e militar, o que lhe confere uma capacidade de resistência à tentativa de apeá-lo do poder. O agravamento da crise econômica jogará um papel decisivo no desenlace da crise venezuelana. De todo modo, é visível o avanço das forças conservadoras na América Latina, como exemplificam os três casos aqui tratados, além de outros como Argentina, agora o Peru e mesmo a Bolívia, onde a pretensão de Evo Morales de concorrer a um novo mandato foi derrotada.