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Morre o último soldado de Santa Dica

Nascido no município de Jaraguá, João Moreira Damasceno teve uma vida longa, produtiva e cheia de histórias para contar. Patriarca de uma família com 14 filhos e centenas de netos, bisnetos e tataranetos, ele foi um dos últimos soldados da Revolução de 1930 e provavelmente o último que empunhou armas com a lendária revolucionária e mística Benedita Cipriano Gomes, conhecida como Santa Dica.

Cerca de 500 pessoas prestaram a última homenagem a um homem querido e admirado por parentes e amigos. Seu corpo foi sepultado na última terça-feira, no Cemitério Parque, no Setor Urias Magalhães. Seus familiares herdaram dele o gosto pelo comércio e são conhecidos pela Rede  Moreira de panificadoras, que leva o seu sobrenome a oito bairros de Goiânia.

Em 1932, aos 19 anos, João Moreira morava com os pais na Fazenda Monzondô, no município de Lagolândia, quando teve  notícias de que em São Paulo, armava-se um golpe contra o presidente Getúlio Vargas. Seus pais, eram amigos de Santa Dica e de seu esposo, Mario Mendes (que viria a ser prefeito de Pirenópolis e deputado estadual por dois mandatos). Num livro auto-biográfico, “Minha participação na Revolução de 1932”, João Moreira narra o episódio:

“Dona Dica e o senhor Mário Mendes eram moradores de Lagolândia e conhecidos do Interventor de Goiás, Pedro Ludovico Teixeira são convidados a se juntarem às tropas oficiais dos governos estaduais e federal para enfrentar este combate. Eu me senti na obrigação de participar e fui um dos voluntários para defender os direitos do governo federal. Me lembro que no dia da partida, passando por Pirenópolis, lá muitos gritavam diszendo que nós seríamos bucha de canhão, ficamos calados e partimos para Anápolis”, relatou,

João Moreira conta que os defensores da República embarcaram num vagão em Anápolis até Uberaba (MG), onde ele e uma uma tropa de goianos de Pouso Alto (Piracanjuba), se juntaram a Santa Dica, que recebeu patente de capitão e formou uma companhia de 150 homens autorizados a usarem fardas do exército e que se incorporaram ao Departamento Manoel Ravello em operações de guerra do batalhão goiano "Siqueira Campos", acantonado naquela cidade.

Ficaram 30 dias no  Triângulo Mineiro fazendo treinamento de tiro com fuzil e combate corpo-a-corpo. “Chegamos a participar do desfile de 7 de setembro na cidade. Mas a vida era dura. Eramos muitos homens, passamos fome. A comida e a água no quartel eram poucas”, recorda. O grupo seguiu para Uberaba e depois para Ribeirão Preto (SP). “Como tinha certa experiência em carpintaria, juntei-me aos 30 homens escalados para engenharia, e fomos construir pequenas pontes”, detalhou.

Centenário, ele era patriarca de uma família com 14 filhos e centenas de netos, bisnetos e tataranetos

Combates sem nenhuma baixa

Pelotão dos goianos, do qual participou Moreira, sempre ia à frente dos outros e por isso correia mais riscos

João Moreira deixa relatos de que graças a fama de Santa Dica de milagreira, o pelotão dos goianos é o que sempre ia à frente dos outros e por isso correia mais riscos. “Sofremos muito, a comida era péssima e a gente dormia de qualquer jeito, mas eu sempre acreditava e confiava que nada de ruim iria acontecer a nós”, anotou.

Episódio mais marcante para a Companhia de Santa Dica se deu na cidade de Jaraguá, no Estado de São Paulo. Os soldados precisavam cruzar uma ponte que estava minada. Dica mandou que um de seus soldados a atravessasse de olhos vendados, fato concluído sem detonar nenhuma bomba. E assim foi com a tropa toda que vendados um a um transpuseram a ponte, que veio a ruir após passar o último soldado.“Graças a Deus ninguém ficou ferido e não precisei dar nenhum tiro. Nem fiquei muito assustado, mas vi muitos homens tremerem de medo. Teve a hora, que quando acabamos de passar na ponte, alguém ateou fogo, mas com a proteção de Deus, ninguém se feriu”, registrou.

Nos seu texto biográfico, João Moreira Damasceno informou que com a rendição dos paulistas, ainda houveram escaramuças até que se cessasse por completo o conflito. A tropa retornou a Goiás e ele foi com Santa Dica até Lagolândia, onde foram recebidos por familiares e foi celebrada missa em louvor a Nossa Senhora da Conceição, para agradecer as graças de nenhum dos soldados terem sido feridos durante os combates.

Santa Dica morreu em 9 de novembro de 1970; 45 anos depois, o último soldado de sua tropa lhe fará companhia.

Em torno de si Santa Dica chegou a reunir cerca de 15 mil almas, 1,5 mil homens capacitados para o uso das armas e cerca de 4 mil eleitores

Quem foi Santa Dica?

Benedita Cipriano Gomes nasceu em 17 de janeiro de 1903 na Fazenda Mozondó à 40 km de Pirenópolis

Por Mauro Cruz.

Benedita Cipriano Gomes nasceu em 17 de janeiro de 1903 na Fazenda Mozondó à 40 km de Pirenópolis. Por volta de 7 anos de idade, Benedita, ou melhor Dica como era chamada, caiu enferma culminando com a perda total de seus sinais vitais. Durante o banho do defunto, notou os familiares que Dica suava frio e muito. Com receio de enterrá-la, mantiveram o velório e após três dias, Dica ressurgiu viva da morte eminente.

Tal Fato espalhou-se pela região como um milagre. Romarias de fervorosos e crédulos roceiros migravam para pedir-lhe a benção e conseguir graças. Em poucos anos, já mocinha, Dica comandava legiões de adoradores que seguiam suas ordens com fiel devoção e em torno de sua casa formou-se povoado. Dica instituiu sistema de uso comum de solo e aboliu o uso genérico de dinheiro, fazia curas milagrosas, rezava missas e dava conselhos. Pregava a igualdade, abolição de impostos, a distribuição de terras. Para Dica a terra era de propriedade do Criador e foi feita para todos. Em sua fazenda não existia cercas e todos os recursos, oferendas e colheitas era revertidos para a comunidade. Para suas curas milagrosas recebia Dica os espíritos do Dr. Fritz, da Princesa Silveira e de um Comandante. Esperava a vinda do Messias para a libertação das doenças e pobrezas.

Com tal política chegou a reunir em torno de si 15.000 almas, 1.500 homens capacitados para o uso das armas e cerca de 4.000 eleitores. Seu poder incomodava os coronéis da região, que viam na Dica uma certa reprodução do episódio de Canudos com perdas de trabalhadores e poder sobre a população.

Porém a fama de Dica espalhou-se pelos sertãos atraindo mais e mais fiéis. Jornais goianos e mineiros denunciavam como um embuste a romaria fervorosa e pediam providências ao governo contra os fanáticos diqueiros, desertores de suas escravagistas fazendas. Até o clero suplicou, em vão.

O que era Rio do Peixe foi redenominado Rio Jordão e Dica reforçou sua força popular e política editando um jornal manuscrito: "A Estrela do Jordão Órgão dos Anjos, da Côrte de Santa Dica".

Os adoradores da Santa Dica, armados, juravam protegê-la contra qualquer tentativa de prisão. As autoridades de Pirenópolis com a polícia municipal se declaram impotentes contra os diqueiros. Restou ao Governo Estadual, em março de 1925, mandar um destacamento, sitiar o local e prender Dona Dica. Um mínimo seria o suficiente para o massacre. Quando um tio de Dica atirou contra os policiais choveu projéteis de metralhadoras sobre as palhoças e o sítio de Dica. Pela "boca do povo" diziam que as balas iam de encontro à Dica, enrolavam em seus cabelos, ou batiam em seu corpo, e caiam pelo chão. Tanto que houve apenas três mortes. Dica ordenou a todos que atravessassem o rio Jordão, que passa por trás de sua casa, para fugir do massacre. Dica foi resgatada por um de seus fiéis puxada do rio pelos cabelos e acabou sendo presa. Dizem na tradição oral que Santa Dica neste episódio amarrou uma sucuri no poção ao fundo de sua casa para que os soldados não pudessem atravessar o rio. Até hoje a população de Lagolândia acredita e não nada naquele local com medo da sucuri da Santa Dica.

A Prisão de Dica não durou muito tempo. Pressionados pela população e sem provas criminatórias o governo acabou cedendo e liberou-a. A partir daí Dica ingressou na política, seus seguidores votavam em quem ela mandasse. Formou exército e foi patenteada com a insígnia de cabo do exército brasileiro. Comandava tropa de 400 homens, que ficaram sendo conhecidos como "pés com palha e pés sem palha", pelo motivo de que sendo a tropa integrada por analfabetos confundiam esquerda com direita. Dica então usou o estratagema de amarrar um pedaço de palha em um dos pés para poder ensinar-lhes a marchar.

Em 1928 casou com o jornalista carioca Mário Mendes, eleito prefeito de Pirenópolis em 1934, e tiveram cinco filhos e adotaram mais dois. O exército dos "pés com palha e pés sem palha" participou da Revolução Constitucionalista de 1932 indo guerrear, com 150 homens, em São Paulo onde voltou sem nenhuma baixa, resultado atribuído aos milagres da santa.

Muito milagres foram realizados por ela. Histórias populares contam que ela andava sobre as águas do Rio Jordão, faziam muitas curas milagrosas e sua tropa era protegida milagrosamente, tanto que quando as balas atingiam seus soldados esta caíam no chão com caroços de milho.

Morreu Dica aos 9 de novembro de 1970 em Goiânia e foi sepultada, conforme seu desejo, debaixo de uma gameleira em frente a sua casa em Lagolândia. Legiões de seguidores cortejaram e velaram durante três dias o corpo da Santa, demonstrando o amor e devoção cativado pela linda moça da Fazenda Mozondó, guerreira e santa.

Lagolândia, hoje, é um povoado do município de Pirenópolis, com algumas centenas de habitantes e algumas dezenas de casas, que rodeiam uma bela praça onde o busto de Santa Dica lidera o espaço dividido entre bancos, flores, imagens de Nossa Senhora e o sepulcro sombreado da Santa. Em sua antiga casa descendentes mantém um visitado altar dedicado a Santa e toda o povoado vive à sua memória.(Agradecimentos à Pompeu Cristovam de Pina)

Busto de Santa Dica em Lagolândia, povoado do município de Pirenópolis

Destaques:

“Eu me senti na obrigação de participar e fui um dos voluntários para defender os direitos do governo federal. Me lembro que no dia da partida, passando por Pirenópolis, lá muitos gritavam diszendo que nós seríamos bucha de canhão, ficamos calados e partimos para Anápolis” - João Moreira Damasceno

“Sofremos muito, a comida era péssima e a gente dormia de qualquer jeito, mas eu sempre acreditava e confiava que nada de ruim iria acontecer a nós” - João Moreira Damasceno

“Graças a Deus ninguém ficou ferido e não precisei dar nenhum tiro. Nem fiquei muito assustado, mas vi muitos homens tremerem de medo.” - João Moreira Damasceno

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