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POLÍTICA

Aliança para o crime

  • Com a redemocratização, agentes sofreram bote da contravenção
  • Capitão, Ailton Guimarães mudou a estrutura do ‘bicho’ no Brasil
  • Castor de Andrade atuava com jogatina, contrabando, samba e futebol
  • Herança do aparelho repressivo, organização de cúpula segue intacta


Com a volta à caserna, após a redemocratização,  a instalação da Nova República e promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, os agentes dos porões da ditadura civil e militar [1964-1985] voltaram à rotina enfadonha dos quartéis e sofreram o bote do jogo do bicho. O resultado foi a criação de uma organização criminosa com planejamento, controle de fluxo de caixa e até divisão territorial. Trocando em miúdos: um modelo empresarial. Essa santa-aliança mudou o perfil do crime organizado no Brasil. É o que revela ‘Os porões da contravenção – Jogo do bico e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado’, de autoria de Aloy Jupiara e Chico Otávio, Record, 264 páginas.

- Amparada na hierarquia e na disciplina militares, a máfia do jogo se organizou, se diversificou e cresceu!

O DOI – Destacamento de Operações e Informações -, da Barão de Mesquita, Rio de Janeiro, além da Casa da Morte, instalada pela repressão política em Petrópolis [RJ], teriam sido as incubadoras dos capangas da contravenção. A ditadura civil e militar retribuiu com proteção e impunidade. Uma das celebridades do promissor mundo da contravenção é o capitão Ailton Guimarães, que virou sócio do ‘Tio Patinhas’. “O jogo do bicho no Brasil jamais foi o mesmo depois da entrada do militar, que havia integrado o temido Esquadrão da Morte. Ele ambicioso  e personalista”, registram os escritores. Ailton Guimarães queria mudar a estrutura do jogo do bicho à luz do que aprendera nos quartéis: organização, centralização de poder e violência.

- Ailton Guimarães passou a ser o capitão da contravenção!

Fim da carreira

Após 19 anos de farda, a sua carreira terminou no ano de 1981. Não custa lembrar: com menos de dois meses de Academia Militar de Agulhas Negras [Aman], ele já tinha recebido a sua primeira punição, 15 dias de cadeia. Mais: em novembro de 1961 já acumulara 35 dias de prisão. O homem voltou antes das férias para participar do golpe de Estado civil e militar que derrubaria o então presidente da República, João Belchior Goulart, um nacional-estatista de linhagem trabalhista. Ailton Guimarães iniciou então a sua ‘guerra particular contra o comunismo’. Eram os sombrios tempos da guerra fria. Um dos primeiros inquéritos que passaria perto era o que envolvia os trotskistas do PORT. Antes mesmo do AI5, em 1968.

- Ele interrogou também Vladimir Palmeira, o líder das revoltas estudantis de 1968.

Decretado em 13 de dezembro, o AI-5 muda a carreira de Ailton Guimarães. Em uma operação, ele descarrega a arma no corpo do esquerdista Eremias Delizoicov. O militante poderia ter sido preso e julgado. Não foi o que ocorreu... A sua fama de herói no combate à suposta subversão lhe dá imunidade para não ser expulso do Exército. Ele não interrogava nenhum preso político com capuz na cabeça. “Fazia questão que os detidos lhe conhecessem”, apontam os jornalistas. Ex-presa política à época dos ‘anos de chumbo’, Cecília Coimbra foi interrogada por Ailton Guimarães, em uma sala de oficiais da Polícia do Exército [PE] no quartel instalado na Rua Barão de Mesquita, narram os autores.

- Vocês estão matando os nossos, então também temos direito de matar vocês [Ele ameaçava]

Membro da ‘Escuderie Le Coc’, Euclides Nascimento, cujo apelido era Garotinho, abriu o alçapão do mundo do crime organizado ao capitão Ailton Guimarães, destaca ‘Os porões da contravenção – Jogo do bico e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado’. O ‘linha-dura’ Sylvio Frota estava irado: “No time escalado para varrer a subversão no País, infiltrara-se o vírus da corrupção”, denuncia. Ailton Guimarães e seus comparsas foram denunciados na 2ª Auditoria do Exército em março de 1974. O capitão é afastado da tropa em 1º de julho de 1976 e enfia-se ainda mais no submundo do crime. Ele envolver-se-ia até na fuga cinematográfica de Mariel Marycotte de Mattos, na Ilha Grande.

Porão

- O porão não o queria mais na tropa. Mas, Ailton Guimarães nas ruas interessava ao SNI para combater a abertura. [Operação deflagrada por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva]. Ele lançaria então o jogo do bicho em um novo patamar do crime organizado.

Papai da Beija-Flor, o contraventor Anísio, Aniz Abrão David,  utilizou o samba para chegar ao poder, ampliar a sua influência e multiplicar os negócios lícitos e ilícitos. Dono da jogatina na Baixada Fluminense [RJ] e campeão do carnaval carioca, dava cobertura ostensiva à ditadura civil e militar. Ele era primo do médico ginecologista e deputado estadual da UDN, Jorge Sessim David e do professor Simão Sessim, que seria prefeito de Nilópolis e deputado federal por nove mandatos consecutivos. A concentração do jogo do bicho na região ficaria nas mãos de uma família proteção política, policial e militar, sublinham Aloy Jupiara e Chico Otávio. Aliado e íntimo de Anísio, Luiz Cláudio adotou o codinome de Laurindo, na Casa da Morte.

O goiano de Morrinhos Paulo de Tarso Celestino Filho morreu sob torturas na Casa da Morte. Coronel, Paulo Malhães, codinome Pablo, que abriu o bico à Comissão Nacional da Verdade, em 2014, era da tropa-de-choque de Anísio. Ele, que também atuou na guerrilha do Araguaia, foco deflagrado pelo Partido Comunista do Brasil  [PC do B, sob inspiração nas táticas e estratégicas do chinês Mao-Tsé-tung, entre 1972 e 1975, morreu de forma suspeita. O agente da repressão enterrou o ex-deputado federal cassado do PTB Rubens Beyrodt Paiva, morto em janeiro de 1971, na Cidade Maravilhosa. É acusado ainda de ter matado Onofre Pinto, dirigente da pequena mas barulhenta Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR.

Anos de chumbo

- Os anos de chumbo promoveram a ascensão dos barões do bicho. Preto no branco: o Brasil do ame-o ou deixe-o encontra uma porta-voz entre as escolas de samba do Rio: Beija-Flor. Ela exalta as ações do governo presente.

Castor de Andrade era dirigente do Bangu, que exercia papel de protagonista no futebol carioca, além de contraventor.  O time havia sido campeão estadual em 1966. Além de controlar parcelas do jogo do bicho, atuava ainda como contrabandista, como mostra relatório confidencial que diz que ele comandaria extensa rede de contrabandistas no eixo Itaguaí-Parati. “Contando com a colaboração de pessoas influentes na esfera federal”, anotaram os investigadores. O delegado de Polícia Mauro Magalhães e o detetive Fernando Gargalione serviram à tropa de Castor de Andrade na contravenção. “Militares se deixavam seduzir pelo poder paralelo”, disparam Aloy Jupiara e Chico Otávio, repórteres investigativos.

- Até o sociólogo Betinho, Herbert de Sousa, o irmão do Henfil, recebeu 40 mil dólares da contravenção.

‘Os porões da contravenção – Jogo do bico e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado’ informa que o bicheiro Castor de Andrade se servia de policiais para garantir uma rede de proteção a seus territórios, ser informado antecipadamente de operações e eliminar desafetos ou quem caísse em desgraça em seus negócios. O contraventor ingressou na Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel e foi campeão em 1979. O livro relata que com a máfia italiana em operação, sobretudo com o capo Antonino Salamone, as máquinas de jogos de azar chegaram e se espalharam pelo país.

Herança intacta

- A conexão italiana, eletrônica e globalizada, sepultava de vez os tempos do bicho primitivo. O negócio mudou, diversificou-se, para além das bancas do bicho. Mas, a organização da cúpula, hierarquia, controle de territórios e engrenagens de corrupção, segue intacta, herança da aliança com o aparelho repressivo.

Dicas de leitura

Título: ‘Os porões da contravenção – Jogo do bico e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado’

Lançamento: 2015

Número de páginas: 264

Editora: Record

Autores: Aloy Jupiara e Chico Otavio

Gênero: Livro-reportagem

Avaliação: Ótimo ***

O que foi a ditadura civil e militar no Brasil

Em primeiro de abril do ano de 1964, fardados e civis derrubaram o presidente da República, João Belchior Goulart, e implantaram uma ditadura. À sombra da guerra fria, a estratégia era desagregar o bloco-histórico nacional-estatista e levar os interesses multinacionais e associados à direção do Estado.

As tropas de Olímpio Mourão Filho desceram a serra sem um só tiro ou protesto e chegaram no dia 2. Jango teria voado com o general Assis Brasil à Fazenda Rancho Grande, em São Borja. Maria Thereza e filhos foram para o Uruguai. O deposto sai de São Borja em 4 de abril. É o que conta Jair Krischke [RS], presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.

- Em seu próprio avião e aterrissa em Durazno.

O primeiro general-presidente a entrar em cena em Brasília [DF] foi Humberto Castello Branco. Ele queria um ato institucional que durasse apenas três meses. “Assinou três”. Queria que as cassações se limitassem a uma ou duas dezenas: cassou quinhentas pessoas e demitiu duas mil pessoas.

O seu governo durou nada mais, nada menos do que 32 meses, 23 dos quais sob a vigência de 37 atos complementares. O marechal Humberto Castello Branco foi o cérebro do golpe de 1964. Ele era o líder da Sorbonne militar, composta, por exemplo, de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.

Para o brasilianista Thomas Skidmore, o movimento civil e militar de 1964 ocorreu com dez anos de atraso e nunca atingiu o seu objetivo estratégico: desmantelar a estrutura estatal e sindical corporativista montada por Getúlio Vargas, que suicidara-se em agosto do ano de 1954, no Palácio do Catete.

“O golpe ia ser dado em 1954, mas falhou por causa do suicídio de Getúlio Vargas”, aponta o autor. Não foi uma quartelada, mas uma ação de classe traçada tática e estrategicamente pelas elites orgânicas do capital transnacional, analisa o cientista político René Armand Dreiffus

- Ipes, Ibad e ESG consideravam o Estado como instrumento de um novo arranjo político e de um “novo modelo de acumulação”.

História: as articulações contra João Belchior Goulart começaram antes de sua posse, em agosto de 1961. Mais: se intensificaram a partir do plebiscito que decretou a volta do presidencialismo, em janeiro de 1963, e tomaram as ruas após o anúncio das reformas de base, em março do trágico 1964.

Sucessor de Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva decreta o Ato Institucional nº 5 em 13 de dezembro de 1968. Vice, o civil Pedro Aleixo foi impedido de assumir o Palácio do Planalto. Depois de um breve exercício da Junta Militar, Emílio Garrastazu Médici chegou ao poder, em 1969.

Em 1977, Ernesto Geisel, o ‘Alemão’, que havia executado a partir de 1974 a distensão lenta, gradual e segura, baixa o Pacote de Abril. João Baptista de Oliveira Figueiredo é abençoado pela caserna no ano de 1978 e o Congresso Nacional aprova a Lei da Anistia, em agosto do ano de 1979.

Os exilados retornaram ao Brasil e os presos políticos deixam os cárceres. A ditadura acabou em 15 de março de 1985. Mas o historiador Daniel Aarão Reis diz que a ditadura termina, de fato, em 1979. Para ele, de 1979 a 1988 há, no Brasil, um período de transição. De um Estado de Direito Autoritário a um Democrático. O escritor Carlos Fico discorda dessa versão.

A democracia no Brasil, depois dos anos de ditadura civil e militar, só se consolida e se institucionaliza, com a remoção do legado constitucional autoritário e a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, sob a Nova República, abençoada pelo ‘senhor Diretas’ Já Ulysses Guimarães.

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