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CULTURA

Inefável solidão

Doracino Naves Especial para  Diário da Manhã

Pensei noutro dia. Se morasse em Porto Príncipe, na época daquele terremoto, poderia encontrar a minha casa amassada pela trepidação da terra. Com essa possibilidade imagino que, numa cidade destruída, é impossível planejar a vida; ir à feira; ao cinema; andar à toa; assoviar despreocupado. Tudo isso é improvável onde existe o caos. Mas o choque das emoções desperta palavras. E elas flamam da alma soltando faíscas. A sensação que a gente tem, quando se escreve com sentimento, é a de que esgotamos o verbo na última palavra. Bate desespero como se nunca mais fôssemos capazes de escrever nada importante. Prostramo-nos inertes, igual abelha que perdeu o ferrão ao defender o seu território.

Goiânia é uma grande colmeia de pessoas. Cada qual tem uma função; veio ao mundo para realizar o seu encargo. No úbere da cidade nasce uma solidão plasmada em nossos olhos cansados. O vento balança bandeiras e árvores; arrasta papéis e pode até arrancar o telhado das casas. Mas não apaga o cheiro da cidade e nem o cheiro do vento que sopra aqui.

Também não elimina as coisas mais leves como o pensamento. Nem o som do violão que meu pai tocava se desfez com o vento. A cultura popular diz que, na arte, o filho acaba puxando aos pais. Eu, não. Nunca aprendi a tocar o cavaquinho que meu pai me dera de presente com o primeiro salário de fiscal de rendas do estado. Herdei somente a voz de barítono, porém, desafinada. Nem no banheiro consigo me ouvir. Sou uma tragédia cantando. Dançando, então, pareço o Maguila no balé clássico. Tem um lugar em que solto a voz: no coro da igreja. A minha voz se mistura ao som do grande coral de fiéis. Sempre atravesso a música. É aí que percebo olhares enviesados e testas franzidas de reprovação; outros abanam a cabeça. Uma velhinha, sentada à frente, olha e sorri conivente. Senti solidariedade naquele gesto; uma cristã de verdade.

Assim devem ser as pessoas nas grandes cidades; generosas. Somos moradores de uma cidade ambulante; as emoções são lugares que precisam de asseio e luz. E, claro, cuidados e atenção para acolher as almas cansadas. O carnaval brasileiro é um período de ócio; o mais longo do País. Essa festa popular foi uma invenção da burguesia medieval que considerava o trabalho uma indignidade. E intercalou os festivais com os momentos de oração e trabalho para dignificar a vida. Outros povos, como os chineses, fazem poesia e se dedicam à natureza nos folguedos; os gregos filosofam na Atenas ensolarada. Na roça, os feriados e os dias santos são tempos de mutirão para ajudar o outro a realizar uma tarefa.

Na terça-feira gorda de carnaval caminho pelas ruas desertas do centro de Goiânia. Penso nos homens indecisos e nos meninos perdidos no caminho; vagam pelas ruas; as casas – deixadas para trás – ficaram amassadas pela inefável solidão.

Uma quaresmeira deixa cair flores temporãs sobre a minha cabeça.

São flores roxas, de defunto.

(Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, escreve aos sábados no DMRevista)

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