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No Timbre: o outro lado do lixo - Vida Seca

Ilustração: Rabiscos e Escarros / Fotos: Renato Vital

Imagine só o que influências, criatividade, motivação e um momento propício podem criar. Foi em Goiânia que um grupo de jovens músicos, (ótimos músicos), fizeram uma fusão entre tantos elementos, que forjaram a mais autêntica massa sonora que já ecoou em ondas nessa cidade. Um conjunto que combina técnica, ritmo, harmonia e temáticas para criar espetáculos, que são possíveis de se contemplar ao vivo e em fones de ouvido.

O grupo Vida Seca é formado por Thiago Verano (33), Danilo Rosolem  (32), Ricardo Roqueto (33) e Igor Zargov (32). Os caras são todos músicos, apesar de alguns também trabalharem com produção e aulas de música.


“Um som metal, plástico e vidro”

Essa história começou em meados de 2002. Na região da Praça Universitária existia um bloco de percussão, com bateria, essencialmente de sucata, que ensaiava naquele lugar. O grupo conta que na época o bloco surgiu no contexto das mobilizações estudantis e manifestações sociais puxadas naquele período. “Quando privatizou o R.U. (Restaurante Universitário), questões relacionadas à Católica e transporte público também”, contaram.

Era uma bateria ou fanfarra tradicional, que participava ativamente das marchas e militância estudantil da época. “Inicialmente tocávamos com instrumentos convencionais, comprados em lojas mesmo, porém rasgavam e estragavam muito facilmente e, como eram caros, tornou-se inviável continuar sempre comprando novos”, revelou o grupo.



Então, levando em conta uma demanda de emergência para que o bloco de batuque não parasse de tocar, os integrantes uniram a necessidade com a criatividade e começaram a utilizar material reciclável. “Procuramos tambores de lixo, latas de tinta e outros materiais que faziam barulho e ensaiamos algumas vezes com esses novos elementos.” O grupo conta que deu tão certo a ideia, que passou a utilizar só instrumentos feitos de sucata para o batuque.

Denominado então de “Bloco do Lixo”, tocava para animar enquanto fanfarra esses protestos que rolavam na época, variando de 15 até 30 membros ativos. Durou até o ano de 2005 tocando sempre em eventos de cunho político e militância.  “Depois de alguns anos ele ficou um tanto desmobilizado, apesar de vez ou outra rolar encontros pontuais, revivendo o Bloco do Lixo”, completaram.

Desse grupo inicial sobraram quatro pessoas, que resolveram continuar tocando, trabalhando com música e levando adiante a ideia de fazer música com sucata, com o lixo e material descartado. “Não era só por um conceito, era uma necessidade, os instrumentos de sucata se tornaram a possibilidade mais viável, depois surgiu a vontade de aprender e compartilhar aquela sonoridade.”

Desse bloco, que já chegou a ter mais de 30 pessoas, surgiria algum tempo depois o grupo Vida Seca.



Naquela época o Alemão do Coró de Pau tinha acabado de chegar em Goiânia e fazia várias oficinas de batuque e até mesmo de construção de instrumentos. “É importante reforçar que o Vida Seca surge no contexto em que esse movimento, que é chamado por aí de maculelê, também estava começando na cidade.”

Com um outro integrante do Bloco do Lixo chamado Pablo, o Igor Zargov, juntamente com o Thiago começaram a ensaiar um grupo de percussão. “O nome pensado seria Os Barrigudas, uma referência àquela árvore do cerrado. Um dia chegou o Ricardo Roqueto para um ensaio e a banda começou a se apresentar.” Na época o quarteto de percussão tocava ritmos brasileiros e até mesmo músicas cantadas, como o canto das três raças, entrava no set-list.


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Com o tempo, o nome Os Barrigudas não vingou e então resolveram mudar o nome da banda para Sangue Seco. “Foi na época em que aconteceu a violenta desocupação do Parque Oeste Industrial, que era para ser como uma homenagem ao sangue derramado das vítimas do estado naquela operação absurda da Polícia Militar”, revelam.

Porém, em Goiânia, já existia uma banda de Punk Rock chamada Sangue Seco. “No nosso primeiro show, vimos um anúncio de um outro evento com o nome da banda de Punk estampado. Então conversamos com o pessoal e reconhecemos que de fato eles já utilizavam o nome há mais tempo.” E foi por essa coincidência que não altera em nada a essência estética do grupo, os rapazes trocaram o nome e fecharam em Vida Seca.



“Não é para ser uma referência direta ao livro do Graciliano Ramos, mas o lance do seco tem a ver com a proposta, porque a ideia é um material morto, uma sucata que está no lixo e ganha uma vida nova”, completou o grupo.

O pessoal comenta que o processo de produção é coletivo. “Cada integrante da banda traz uma sequência, uma batida, um groove, um ritmo e nisso vamos incorporando na composição completa e sai a música.” O grupo sempre fazia ensaios, mas sem partitura e sem gravações.

“Um som para ver e ouvir”

Quando entrou o novo integrante, Danilo Rosolem, em 2006, a banda decidiu abandonar de vez por todas qualquer instrumento convencional e adotar a sucata como o estilo definitivo do grupo. “Tanto a estética quanto a sonoridade, a identidade da banda mesmo se alterou quando entramos de vez na ideia de tocar o som da sucata”, declaram.

O grupo fez um projeto aprovado na Lei Municipal de Incentivo à Cultura levando a reflexão do reaproveitamento, considerando as questões ambientais e surgiu o “Lixo Ritmado, Batuque Reciclado”. Além de um projeto musical, o grupo fazia oficinas em vários lugares, com crianças e jovens, que, além de aprender a tocar, discutiam a questão do reaproveitamento.

Os integrantes do grupo faziam experimentos e muita pesquisa com materiais do lixão e ferro velhos. “A gente catava coisa na rua mesmo, em lote baldio, roubávamos lixos da casa dos outros só para tentar tirar algum som daqueles objetos. A nossa música vinha do contato que cada um tinha com a rua.”



O pessoal do Vida Seca começou a fazer contato com outros grupos, bandas e músicos experimentais. “Edilson de Morais, Márcio Vieira e outras pessoas ‘fodas’ de grupos bons, que entendem e sabem construir instrumentos, abriram nossa mente e deram dicas de como fabricar nossos próprios sons.” O grupo Uakti, de Belo Horizonte, que também trabalhava com percussão, foi uma referência para os músicos do Vida Seca.

Os rapazes contam que fizeram viagens para outras cidades, inclusive para Portugal, tanto para tocar quanto para entrar em contato com essas pessoas que também nadavam na onda de instrumentos não convencionais, e disso surgiu o Ladrilhofone (instrumento feito com ladrilhos e cerâmica de piso) e o Planetário (um tipo de baixo acústico, com o som bem grave).

Com um repertório mais complexo, partindo da ideia que “nenhum som é puro, tudo é frequência e pode ser experimentado”. O que inicialmente era um batuque mais seco, com latas e tambores, incluindo chocalhos e outros instrumentos de percussão, passou a ser cada vez mais elaborado.



Na composição do som da banda foram incorporadas flautas feitas de cano de PVC, clarinetas com balões, violinos improvisados, entre outros experimentos diversos, que geram sons tanto em escala temperada quanto notas mais dissonantes.

Concretização

O primeiro espetáculo do Vida Seca começou em 2008, chamado de Som de Sucata, era composto de figurino, performance e a música feita ao vivo. “A gente sempre tocava com crianças e percebemos que elas riam, assustavam e gostavam muito e notamos que tinha potencial para ser apresentado em outros espaços.”

Então, em 2008, saiu o primeiro disco, com o mesmo nome, Som de Sucata e logo depois um DVD, com o mesmo espetáculo. O grupo então passou a ser chamado para tocar no meio dito “underground” da cena independente em Goiânia. “O engraçado é que no meio de um festival, onde predominantemente tocava bandas de rock, a gente se apresentava e o público parava para ouvir, prestava atenção e curtia aquela coisa que não se enquadrava em nenhum padrão”, completam.



O Vida Seca tocou em festivais como Goiânia Noise, Bananada e outros eventos da cena independente da cidade. A atitude da banda de fazer tudo, de criar os instrumentos, até montar no palco, fez com que fosse aceita nesse meio do rock. Gerou uma legião de fãs e influenciou muita gente que seguiu fazendo som a partir do batuque, da percussão e outros ritmos encorpados. “As apresentações em shows, mas principalmente o trabalho que cada um de nós fazíamos com oficinas de batuque, dezenas de blocos musicais surgiram e alguns duram até hoje, chegando a atingir mais de 500 pessoas por semana.”

Alguns blocos, como o Batuque Revolução, Vida Nova, Bloco Canedo, entre outros, vingaram e chegaram até a ganhar cachê para se apresentar. As oficinas e os shows dos músicos do Vida Seca deixaram sementes de batuque por toda parte do Estado.

O grupo participa ativamente de vários projetos de intervenção cultural, como na Casa Corpo, além de estar envolvido com agitações por todo canto.

Radioativo

No início desse ano, o Vida Seca lançou um novo disco e um DVD da apresentação. Retratando e relembrando o acidente do césio 137, o grupo incorporou uma nova sonoridade, sem abandonar a estética da banda.



O que poderia ser chamado de “Progrelixo” ou até mesmo “The Dark Side of the Lixo” foi o disco e performance altamente elaborada, cheia de murmurinhos e borbulhas auditivas diversas, que nos leva a experiência quase visceral do ambiente radioativo e do medo que passou pela mente dos goianos naquele fatídico ano de 1987.

Confira trecho da resenha do jornalista Leon Carelli, do DM Revista, sobre o disco:

“Os indícios de atividade radiológica a influenciar o trabalho do grupo surgiram um ano antes, em 2007, quando encontraram-se com o grupo de dança ¿por quá? Ambos os grupos iniciaram o projeto de um espetáculo cênico-musical que abordasse o tema do césio.

A radioatividade que contaminou a sonoridade da banda não veio do contato direto com o elemento Cs. Acontece que os sobreviventes do desastre radiológico de 1987 se uniram na tentativa de espalhar ao mundo o descaso com que eram tratados pelo poder público, que deveria se encarregar do tratamento dos males causados pelo descarte indevido de material de tamanha periculosidade, que teve um impacto gigantesco na saúde de inúmeras pessoas.


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Essa ideia de descaso contaminou as mentes dos quatro integrantes desse grupo do som de sucata, que, inquietos e com raiva do mau tratamento dessas vítimas da ditadura do lucro a qualquer custo (que se materializava em seus corpos através de mal-estar e doenças), passaram a transmitir aos seus instrumentos a radioatividade da revolta. O resultado pode ser ouvido em duas faixas longas. Rua 57, de 16 minutos, e Nº 60, de 27.

São peças progressivas, que exploram e evoluem camadas de instrumentos. Essas camadas diferenciadas funcionam de forma emocional e têm vida própria. Elas se misturam ao longo do processo, criando fases de transição, à medida que convidam novos instrumentos a participar. Trata-se de um som firme e sólido, como deveria ser, tendo em vista que são criados em processo totalmente mecânico.”


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