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O engenhoso trabalho de Cervantes - O fidalgo Quixote e o nascer do gênero romance

– Este é o dia, ó Sancho!, em que se há de ver o bem que me tem guardado minha sorte; este é o dia, digo, em que se há de mostrar, como em nenhum outro, o valor do meu braço, e em que tenho de fazer obras que fiquem escritas no livro da fama por todos os vindouros séculos. Vês aquela nuvem de poeira que ali se levanta, Sancho? Pois está toda coalhada de um copiosíssimo exército que de diversas e inumeráveis gentes por ali vêm marchando. [...] Estava Sancho suspenso de suas palavras, sem dizer nenhuma, e de quando em quando virava a cabeça para ver se via os cavaleiros e gigantes que seu senhor referia; e, como não descobria nenhum, disse-lhe:

– Senhor, que vá para o inferno cada homem, gigante e cavaleiro de quantos vossa mercê diz que aparecem por aqui. Ao menos eu não os vejo. Talvez tudo deva ser encantamento, como os fantasmas de ontem à noite.

FICHA TÉCNICA

Título: O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha (livro I) (El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha)

Autor: Miguel de Cervantes [Saavedra] (espanhol) 1547-1616

Data da 1ª publicação: 1605

– Como dizes isso? – respondeu D. Quixote. – Não estás ouvindo o relinchar dos cavalos, o tocar dos clarins, o ruído dos atambores?

– Não ouço outra coisa – respondeu Sancho – senão muitos balidos de ovelhas e carneiros. [...]      – O medo que tens – disse D. Quixote – faz, Sancho, que não vejas nem ouças direito, porque um dos efeitos do medo é embotar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são; e, se tanto temes, põe-te à parte e deixa-me só, que só basto para dar vitória à parte a que eu der minha ajuda. [...] – Volte vossa mercê, senhor D. Quixote, que juro por Deus que são carneiros e ovelhas os que vai investir! Volte, pelo desditoso pai que me gerou! Que loucura é essa? Veja que não há gigante nem cavaleiro algum, nem gatos, nem armas, nem escudos partidos nem inteiros, nem veiros azuis nem endiabrados. O que é que está fazendo? – Miguel de Cervantes

“Este, que aqui vêdes, de rosto aquilino, de cabelo castanho, de testa lisa e alta, de olhos alegres e nariz adunco, ainda que bem proporcionado, de barbas de prata que, há mais de 20 anos foram de ouro, de bigodes grandes, boca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns com os outros; o corpo, entre dois extremos, nem grande, nem pequeno; de cor viva, mais branca do que morena, de espáduas um tanto largas e de pés não muito ligeiros; Foi soldado durante muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foi aí que aprendeu a ter paciência na adversidade. Perdeu, na batalha naval de Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareça feio, ele considera formoso por tê-lo conseguido na mais memorável e difícil das ocasiões que os séculos passados jamais viram. Este, digo, é o retrato do autor de A Galateia e de Dom Quixote, que chama Miguel de Cervantes Saavedra[...]”

Este é o retrato – feito por um conhecido ao prefácio de outra obra famosa sua, Novelas Exemplares – de um dos personagens mais importantes da literatura universal, que expirou neste mesmo 23 de abril em que você, leitor, lê estas palavras, ainda que tenha sido um 23 de abril do ano de 1616. Se a história queria frisar em seus anais uma data, certamente escolheu esta, pois algum tempo antes, também no dia 23, falecera outro gigante da literatura: Shakespeare. Mas falemos do latino, não do anglófono.

Dom Quixote é um dos personagens mais originais já concebidos na literatura, igualmente um dos mais referenciados. Dostoiévski já relatara, não apenas uma vez, que seu célebre O Idiota é profundamente inspirado no clássico de Cervantes; Machado de Assis cita mais de uma vez, em seu Memórias Posthumas, o icônico personagem e diversos outros escritores reverenciam a obra deste que é considerado um dos precursores do gênero romance.

Cervantes teve uma vida da qual sabe-se pouco, mas do pouco que se sabe, sabe-se que fora bastante agitada. Filho de um cirurgião, viviam viajando em busca de melhores condições de vida e também na constante fuga por conta das dívidas financeiras de seu pai. O quarto de cinco filhos, não se tem nota de que tenha estudando formalmente, mas é um consenso entre historiadores e biógrafos que tinha avidez pela leitura e era um sujeito especulativo.

Passa uma temporada em Madrid, onde principia sua carreira literária, de onde sai fugido por ter ferido, em duelo, um indivíduo influente. Seus traços se perdem e só reaparecem em Roma, onde é camareiro de um monsenhor e, depois, vira soldado, ocasião na qual passa um tempo como escravo capturado pelo exército rival e também onde perde sua mão esquerda.

Dom Quixote é um dos maiores clássicos da literatura, sua contribuição nesse sentido é dupla. É o livro que, por um lado, funda o gênero do romance e, por outro, abole esteticamente as antigas odes à cavalaria.

Se antes o cavaleiro era um ser mitológico, posto nos mais altos patamares em que se pode colocar o homem, sempre a salvar reinos e decepar criaturas fantásticas, a conquistar donzelas e a provar o valor de seu braço. Em Don Quijote percebemos que, em verdade, cavaleiros são funcionários extremamente sofridos e que vivem quase que como despossados. Banhos escassos, miséria alimentar, peregrinação errante, morte por pestilências as mais diversas; e sempre acompanhados de outro ainda mais pobre e miserável que é o escudeiro.

Se ao cavaleiro das histórias são destinados os afagos dos próximos e os louvores dos que ouvem suas histórias; o que percebemos em Quijote é a ojeriza dos que estão perto e a incredulidade dos que ouvem os causos.

Cervantes nos conta a história de um fidalgo – sujeito de posses, conquanto não fosse nobre – de físico esquelético e rosto chupado que, entediado a maior parte do tempo e avoado, dedicasse a maior parte das horas à literatura. Obceca-se pelos épicos de valaria. Os lê tão ávida e alvoroçadamente que, ao passar do tempo, não distingue mais a ficção da realidade e, vendo em sua vida apenas o tédio e a rotina, resolve ingressar nas aventuras e desbravamentos destinados ao seleto grupo dos cavaleiros andantes.

Arma-se de sucata, da qual produz seu escudo, sua armadura e sua lança e, desta feita, monta seu pangaré Rocintante – que a ele parece o mais puro-sangue dos alazões – e sai em sua jornada, levando consigo um ingênuo trabalhador do campo, a quem promete territórios e castelos e títulos de nobreza, com a condição de que este o servisse como escudeiro. Nos apresenta a história então o hilário Sancho Pança.

Deste trabalhador ingênuo e de seu patrão louco Cervantes extrai a nós as mais descabidas situações, que podem parecer, ao desavisado, um pastelão de quinta categoria, mas que são finas caricaturas da áurea destinada aos livros sobre homens armados e destemidos, que errantes viajam o mundo.

Onde veríamos nós dois mendigos montados em cavalos, Quijote vê a si próprio, o mais valoroso cavaleiro andante que já pisara a face da terra e seu escudeiro, o mais competente e valoroso auxiliar. Onde vemos nós um moinho de vento, Quijote vê gigantes que aprisionam princesas. “Mas senhor, eram apenas moinhos”, dirá Sancho. Ao quê Quijote responderá: “Vês moinhos porque fruto de feitiços em ti lançados, meu ingênuo escudeiro.”

De calotes em estalagens a libertação de presos, passando por ataques a ovelhas na confusão de que fossem um exército. Todo tipo de peraltice se encontra neste clássico literário. Tudo isso com um humor atualíssimo e que fica ainda mais deleitosamente apreciável se avaliado enquanto uma contumaz, ainda que descontraída, crítica dos apelos estéticos e literários da época.

É de uma genialidade tal que não é Cervantes que nos conta a história de Quijote e seu escudeiro, mas um historiador fictício chamado Cide Hamete. Um sujeito que recolheu todos “os diversos relatos e panfletos” já escritos “sobre este valoroso herói que cruzou nossa terra”.

A leitura deste romance é uma necessidade à compressão de qualquer outro que se tenha produzido após ele. Entender o Quijote e sua loucura é entender a literatura na qual estamos inseridos hoje.

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