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CULTURA

Retrato da solidão

O Setor Aeroporto é artificial. Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima esfolaram a terra para construir o primeiro aeroporto de Goiânia; deformaram o cerrado com suas máquinas de fazer ruas. Aliás, o planeta terra está desfigurado para atender as necessidades do homem. E continua sendo desfeito para plantar, construir fábricas e cidades. Então, Goiânia é artificial e o Setor Aeroporto também. Lá tem uma réplica do 14 Bis, na Praça do Avião, que, de 1930 a 1950, foi cenário de desfile de moda de quem esperava o avião do Rio de Janeiro ou de São Paulo. As mulheres passavam elegantes, vestidos de rendas com babados românticos e sombrinhas coloridas rodopiando no ar. Os homens vestiam ternos de linho branco 120 ou Pitex inglês. Getúlio Vargas, na sua Marcha para o Oeste, pisou o solo do Setor Aeroporto para abraçar Pedro Ludovico Teixeira num amarrotado terno de linho. Numa sala da Panair tinha gatos e rato.

O gato comeu o rato e os gatos foram dizimados por um açougueiro vindo do nordeste. Certamente eles viraram churrasquinho na Praça do Avião. A egrégora dos gatos criou barreiras para proibir a entrada deles no Setor Aeroporto. O caçador de gatos mudou de ponto; os gatos, escaldados na água quente do churrasqueiro, fugiram de medo da água fria do Capim Puba. O sol crispa solerte sobre os telhados do Colégio Agostiniano e da nova Igreja da Praça que tem arquitetura moderna. Os primeiros moradores construíram suas casas no meio dos pequizeiros, lobeiras e gabirobas rasteiras que faziam sombras para esconder a cascavel do cerrado.

Por causa dessa mania de fazer cidade no meio do mato penso que Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima foram homens solitários. O prefeito Venerando de Freitas Borges, alegre dançarino dos pagodes caipiras, punha fogo na alma dos primeiros moradores. A antiga Estação Rodoviária, grande para o começo da cidade, tinha pouco movimento de ônibus. Nessa época eu trabalhava numa loja de tecidos em frente ao Teatro Inacabado. Ao passar pela Rodoviária vi um velho solitário com uma pequena mala de couro rústica sentado num banco isolado. Tinha as pernas cruzadas; os pés calçados com botinas. Na cabeça um surrado chapéu de feltro. O olhar perdido no infinito. Do aceso pito de palha tirava longas baforadas. A fumaça sumia com o vento. Um retrato eloquente da solidão.

Parei por um instante para observar a figura emblemática daquele homem. Por um momento me lembrei do meu avô Cláudio, que ficara em Porto dos Barreiros. Fiquei com pena daquele velho solitário da Rodoviária. De onde ele vinha ou aonde estava indo pouco importava; foi a figura triste e sorumbática que me fascinou. Será que alguém o deixara ali ou ele teria chegado de viagem e aguardava um parente que deveria buscá-lo?

Não me aproximei para falar com ele. Preferi manter a aura de mistério que eu criara diante daquela imagem. Assim, qualquer que fosse o seu destino eu não me sentiria responsável por ele. Cumprimos o nosso dever; eu o de gravar aquele instante na mente e ele o de expor ao mundo a sua figura solitária.

Saí com aquela opinião impressa na minha mente. Desde então, quando penso numa figura solitária, vejo aquele velho sentado no banco da rodoviária. Sofro no despertar das minhas lembranças usurpadas por fantasmas e armadilhas ancestrais.

Navego entre multidões e desencontros de vidas passadas. O caminho do homem pelo eterno cosmo é o retrato irretocável da solidão.

(Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, escreve aos sábados no DMRevista)

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