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CULTURA

Arte escrita na terra seca do Nordeste

Walacý Neto,Especial para DMRevista

Um abrir de cortinas e assim começa o livro O Auto da Compadecida, do pernambucano Ariano Suassuna. Originalmente escrito para ser encenado pelo Teatro Adolescente de Pernambuco, a peça já foi reproduzida no cinema, na televisão e também como livro. Em todos esses 'veículos' O Auto da Compadecida é destaque devido ao perfeito retrato, feito na simplicidade. De acordo com o autor, a obra se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste, os quais não são expressos com frequência. As características de cada personagem, como, por exemplo, a malandragem e esperteza de João Grilo, um verdadeiro arlequim estritamente brasileiro.

A peça se articula nas características de um povo e pega como justificativa o santificado relacionado ao profano. É possível fazer relação entre O Auto da Compadecida com obras de Gil Vicente, por exemplo, devido a essa construção. Porém, na obra de Suassuna os personagens são construídos por meio da simplicidade que cada um tem, de seus erros ambições e acertos. Além disto, a expressão brasileira, mais especificamente do povo nordestino com as crenças, define extrema humanidade aos personagens. Vale também apontar a sátira utilizada em cada personagem, esta aparece de forma tão sutil e justificada pela história que se torna natural. O anti-herói João Grilo, que consegue sobreviver a diversos empecilhos com a esperteza necessária e constante do povo nordestino, é um exemplo claro dessa caracterização de Suassuna.

A relação com o sagrado, expressada no momento do “julgamento dos canalhas, entre os quais um sacristão, um padre, um bispo, para exercício da moralidade”, também tem referências com obras barrocas. A sátira fica explícita na contradição onde os sacerdotes, pessoas mais próximas de Deus, são maus exemplos, enquanto o nordestino João Grilo consegue apelar para Nossa Senhora atrás de salvação. “É preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas”. A justificativa do texto é constante em diversas cenas da peça, esta, por exemplo, demonstra a humanidade dos personagens através da fala de Nossa Senhora, que atua como antecessora e advogada.

O autor

Ariano Suassuna, o autor e “fotógrafo” dessa parte cultura brasileira, também trabalhou por anos na política. Aliás, a história do escritor com a governança veio com seu pai, João Suassuna, que foi presidente do Estado (antiga alcunha para governador). Ariano Vilar Suassuna nasceu no dia 16 de junho de 1927 dentro do Palácio da Redenção, sede do Executivo paraibano. Com a morte do pai, assassinado durante a revolução de 1930 por motivos políticos, a família se muda para Taperoá, onde vive de 1933 a 1937. Suassuna viveu em diversas cidades do Nordeste e durante as andanças escrevia peças como: O Castigo da Soberba (1953), O Rico Avarento (1954) e A Farsa da Boa Preguiça (1960). A morte de João Suassuna foi grande laço criativo para Ariano, o próprio autor assumira essa influência durante sua entrada na Academia Brasileira de Letras: “Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o pai deixou”.

No ano de 1970, o pernambucano começa a articular uma movimentação para que as expressões populares tradicionais tenham maior conhecimento do público. Começa-se o “Movimento Armorial” que relaciona a cultura nordestina com a arte barroco, principalmente na música erudita. Desse movimento surgiu o Quinteto Armorial com músicas instrumentais de raízes nordestinas. A música do Quinteto propõe uma relação entre o cancioneiro folclórico medieval e as práticas criativas dos cantadores nordestinos e os instrumentos musicais mais tradicionais dessa região.

As outras expressões criadas durante o período do movimento levavam em consideração essa linha entre o erudito e a cultura popular do Nordeste brasileiro. A ideia de Suassuna afetou diversas áreas de arte como música, dança, literatura, artes plásticas, teatro, cinema e arquitetura. Nessa época, Ariano lança dois romances: Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta, em 1971, e Histórias d'O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1976). “A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do romanceiro popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo romanceiro relacionado”, afirma Suassuna sobre o movimento.

Ariano Suassuna morreu no ano passado, no dia 23 de junho, mesmo mês que comemora aniversário, que é no dia 16. O autor havia dado entrada no Real Hospital Português, em Recife, no dia 21, vítima de um ataque cardíaco. O corpo de Ariano foi sepultado no Cemitério Morada da Paz em Paulista, na Região Metropolitana do Recife no dia 24.

Portanto, a obra de Suassuna fica como um álbum fotográfico ou um livro de história que por vários anos será a principal síntese da expressão nordestina. O Auto da Compadecida, por exemplo, pode ser considerado um registro tanto sentimental quanto histórico da realidade e esperteza de uma parte da sociedade brasileira. Assim como em Guimarães Rosa, assim como em Euclides da Cunha, as obras de Suassuna são como livro-reportagem denunciando uma expressão e dando voz para aqueles que muitas vezes não tem.

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