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CULTURA

Do lado direito do sol

Criança é a poesia ligada numa tomada com duzentos e vinte anjos. Poeta se imagina criança conectada com o universo das imagens. A epifania desta crônica revela a sobrenatural tentativa de fugir do supérfluo mundo das aparências. Gosto de jogar as palavras no papel com o pensamento lúdico de viajar para o lado direito do sol. Esse o jeito que encontro para enfrentar a vida; pode ser mais uma tentativa de enrolar a morte inexorável com a agradável fantasia dos sentidos.

Rubem Alves, disse que “cada velho tem, dentro de si, uma criança que deseja brincar”. Então, quando eu morrer, quero nascer de novo criança, carregar água na peneira, à imagem de Manoel de Barros. Essa ideia de que o sol tem lado é do Menino do Mato, “ele me disse que do lado esquerdo do sol voam mais andorinhas do que os outros pássaros”. Não sei a resposta certa a essa questão, mas a precisão poética está no poema Joaquim Sapé.

Transformar imagens em palavras é ofício de escritor. Gabriel Nascente, o menino com franjas de doce das laranjeiras, é poeta de tempo integral “tatuando borboletas no dorso dos horizontes”. O universo é a macro poesia do Criador; o verbo, síntese transcendental, é o microcosmo do poeta; adivinho dos afetos, da morte e das paixões. Isso mesmo; poetar é fecundar a aridez desértica da existência.

Ele vive, à exaustão, a dor metamórfica. E ainda se faz castiço para interpretar a vontade de Deus que sempre tem algo a nos dizer. Assim como é a criança que conhece a alma dos adultos, sabe tudo; do começo ao fim. Para Gilberto Mendonça Teles “O fim do mundo começa no fundo meu quintal, nas sombras daquele muro de taipa que se eleva até as nuvens e me obriga a imaginar o que está do outro lado, nos limites ou no sem-fim da forma inatingível – essa que o azul do tempo borda ou disfarça no invisível das folhas da mangueira”.

Pois é. Preste atenção em quem escreve ficção. Se ele não se tornar menino o texto fica gago. Ariano Suassuna, menino-moleque do sertão nordestino, vestia a roupa da travessura para contar seus causos. Chicó, seu personagem em O Auto da Compadecida, era um doido menino que contava mentiras. Numa de suas entrevistas Suassuna disse ter “simpatia por mentiroso e doido. Como sou do ramo, identifico mentiroso logo.”

Todo escritor é um mentiroso que finge dor ou alegria; ou os dois juntos. Geraldinho foi um mentiroso alegre que Hamilton Carneiro conheceu em Bela Vista. A história da bicicleta é mentira. Nilton Pinto, outro mentiroso incorrigível, tem a pureza lírica da gente da roça. E sabem por que a dupla com Tom Carvalho dá certo? Porque, agora, são dois mentirosos. No bom sentido, claro.

Gente estou esquecendo o tema de hoje: crianças.

Elas não podem viver bem sem a poesia que alumia os caminhos escuros da alma. Menos notícia, mais poesia!

Nada melhor para explicar um pensamento tosco, como é o deste cronista, do que recorrer a Carlos Drummond de Andrade. “A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem”.

Penso que o poeta, igual aos meninos, vivem a colorir pássaros, qual berloques de dançarina espanhola.

Criança é poesia, ainda que o Poeta não a houvesse criado.

(Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00. Escreve aos sábados no DM Revista)

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