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CULTURA

Sofá amarelo

Numa manhã de inverno o amigo Agostinho chega a minha casa, na 4ª Avenida, Vila Nova.

– Dei o seu nome para ser padre.

– Padre? Eu? Ficou louco, Agostinho? Eu quero é ser oficial da Aeronáutica.

– Pois é. Mas o seu nome já foi para o seminário de padres, lá no interior de São Paulo.

Quem gostou de ouvir essa notícia foi a minha mãe; devota do Divino Espírito Santo. Até hoje penso que foi ela quem armou isso. Afinal, aos 12 anos, eu a acompanhava às novenas em louvor a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na Igreja Matriz, em Campinas. Decerto ela pensava que eu gostaria de ser padre.

Pensei, humildemente: não sou tão bom assim para ser padre. Ainda ontem pequei. Na brincadeira de “passar anel” segurei as mãos de Diná. Ela gostou e respondeu com um sorriso brejeiro. Piscou maliciosamente e deixou o anel comigo; meus pensamentos profanos foram longe. Dormi sonhando com as mãos macias de Diná se mexendo entre as minhas.

Senti-me impuro por pensar assim. Por isso não quis ser padre. Meus sonhos, literalmente, voavam pelo espaço: entrar na Aeronáutica, vestir a farda azul, pilotar um avião de caça. Quem sabe eu seria o herói de alguma mocinha sonhadora da Vila Nova. Diná, aquela de cabelos castanhos, olhos de amêndoas, que morava na Rua 210 era a desejada. Eu me via como se fosse Willian Olsen, herói de Grace Kelly, em As Pontes de Toko-Ri. Diná poderia ser a minha doce Grace.

Planejei encontrá-la no sábado de festa junina. O parquinho de diversões já estava instalado na Praça da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Vesti a minha melhor roupa de frio. No pátio da igreja tinha quermesse, barraquinha e correio elegante. Procurei Diná no parque. Não a vi. Numa barraca toda enfeitada de fitas e balões coloridos estava Diná com vestido simples de tafetá rosa. Na frente tinha florzinhas bordadas da cintura até o peito.

Fui com a intenção de enviar o correio elegante; bilhetinho entregue a uma mensageira com palavras de amor. Diná tinha um irmão grande, maior e mais forte do que eu.

– E se ele abrisse o correio elegante?”. Cocei a cabeça.

– Ah, já sei: vou mandar um recado pela irmãzinha.

Novamente recuei com receio de que ela contasse à mãe. Haveria outra saída.

“Achei!”

O serviço de alto-falante tocava músicas com recados nos intervalos. Era a minha chance de me fazer ouvir. A mensagem nos decibéis possantes do serviço de som; ecoou nos confins da Vila Nova.

“Alguém oferece a alguém como prova de amor e carinho. E esse alguém sabe quem.”

Meu rosto corou ao ouvir a mensagem na voz estridente do locutor.

Corri de volta pra casa. Nem Diná soube que fui o autor e nem ela o alvo da estranha e hermética declaração de amor.

Escondido na sala pensava no fracasso da minha declaração. Vozes ocultas falavam da minha falta de habilidade nessas coisas.

Até ouvia a respiração dos móveis na noite estrelada de junho. O sofá amarelo, amigo de sonhos, abriu os braços para eu deitar.

Apaguei a única luz da sala de um barracão de três cômodos em que morávamos.

Havia paz, sossego e tênue esperança.

(Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, escreve aos sábados no DMRevista)

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