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CULTURA

Tantos anos (II)

Debaixo da latada de bougainville, havia uma casinha que meu avô mandou fazer para as netas. O teto era de palha e o chão, de terra batida. Nos esteios, pendurávamos redes para as bonecas; em um fogãozinho mambembe fazíamos comidinhas de verdade – e ficávamos orgulhosas, quando os adultos aceitavam nossos convites e vinham tomar chá conosco. De minha madrinha, ganhei um miniaparelho de café, em porcelana branca enfeitada com botões de rosa: tinha xícaras, bule e açucareiro e era o meu orgulho, motivo de inveja das outras meninas. Dele, ainda restam algumas peças que sobraram das muitas mudanças; bem como um bauzinho de madeira de folha de Flandres, pintado de bege, onde guardava as roupas das “minhas filhas”.

Para os dias de semana, tínhamos bruxinhas de pano, feitas à mão, assim como suas roupas de retalhos coloridos. Nos finais de semana, dias santos e aniversários, podíamos brincar com nossas bonecas “de loja”, de massa ou de galalite, espécie de plástico que era novidade. Meu preferido era o Luis Carlos – carequinha e gorducho, parecia um bebê de verdade. Como se fosse uma entre dezenas de crianças, levei-o à pia batismal num dia de desobriga e missa. O padre percebeu a brincadeira, sorriu com indulgência e seguiu em frente; afinal, eu era a neta predileta do amável coronel que sempre o recebia com almoços caprichados e conversas amenas.

Aprendi a fazer ponto de cruz e renda de bilro; brinquei de pegar, correndo pelo casarão ancestral – quando evitava passar perto do cavalete onde ficavam os arreios e as selas, moradia de besouros zumbidores, os “cavalos do cão”. Nos quartos do puxado, baús tauxiados guardavam redes e roupas antigas; vez por outra, podíamos usá-las em encenações teatrais, quando recitávamos quadrinhas infantis. Com o passar do tempo, o repertório foi ampliado com “I-Juca Pirama”, “Meus Oito Anos”, “Navio Negreiro” e tantos poemas mais.

Era uma festa quando minha avó fazia biscoitos de polvilho e íamos ajudá-la, recortando as asas de pequenas juritis de massa, depois assadas no forno de lenha. Em época de moagem de cana, além da garapa e do melado, refinava-se açúcar e fazia-se puxa-puxa. Ainda posso ver as bolas que se formavam ao contacto com a água fria e sentir seu cheiro adocicado.

Duas vezes por semana, havia que tratar do jardim. De espécies variadas, as plantas eram distribuídas sem preocupações estéticas; tinham por finalidade primeira fornecer flores para adornar os altares da capelinha ao lado. Havia lírios de São José, perfumadas borboletas e jasmins, veludos, dedais de ouro, uma que outra roseira colocada sobre jiraus inacessíveis às formigas, que eram muitas. Molhávamos os canteiros com um regador, tirando água do panelão de ferro que ficava debaixo da torneira – e que, em outros tempos, servira para cozinhar a comida dos escravos da fazenda.

No jardim, moravam alguns jabutis. Eu gostava de alimentá-los com bananas e folhas; subia em seu casco, fazendo-o andar no seu jeito pachorrento. Alguém me advertiu: “Menina que brinca com jabuti não se casa”. Pelo seguro, deixei os bichos em paz.

Dos meus animais de estimação, a preferida foi uma veadinha malhada, graciosa e arisca. Ganhei-a de presente de um empregado, caçador de boa fama. Cerquei-a de cuidados: dei-lhe leite em mamadeira, feita com uma garrafa e um bico de borracha; arrumei uma caminha de palha na bolandeira; não deixei faltar água fresca. Achei que a tinha conquistado, pois vinha comer na minha mão. Certa noite, porém, ela desapareceu. Os adultos procuravam confortar-me, dizendo que era animal selvagem, que não se acostumaria ao cativeiro. Mas eu chorei, desconsolada.

Ao lado da casa-grande, pés de jasmim Cayena cobriam-se de buquês rajados em amarelo e vermelho, às vezes entremeados de enormes lagartas coloridas, que era preciso combater. Em frente, um jatobazeiro abria a copa, sombreando parte da rampa que levava ao pátio. Uma das diversões favoritas da criançada era descê-la, correndo e equilibrando-se sobre as muretas laterais. Ao sopé do morro, um cruzeiro de madeira, pintado de vermelho, carregava os símbolos do suplício de Jesus: a lança, a escada, a esponja, o galo que cantou três vezes... Além, mangueiras formavam duas filas; quando havia luar, suas folhas lançavam sombras rendadas no capim. Ao longe, ouvia-se o murmúrio do riacho da Prata.

Nos dias de chuva, jogávamos baralho, damas ou gamão, em um tabuleiro de madeira entalhado; um pequeno copo de couro servia para lançar os dados. Brincávamos de adivinhação, de anel, de pular corda dentro de casa; e até andávamos de velocípedes nos varandões que a cercavam.

(Lena Castello Branco, escritora)

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