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CULTURA

Um útero é do tamanho de um punho

Walacy Neto,Da editoria DMRevista

Dairan Lima tem agora seus 55 anos. Ela começou a ler enquanto estudava em uma escola evangélica, portanto seu primeiro contato com literatura foi por meio da Bíblia.

– Já era meio rebelde, mas adorava ler e ouvir histórias. Tinha também uma empregada, aqui de casa, que era analfabeta e contava histórias de Trancoso, já ouviu falar? Então, ela me contava e eu ficava fascinada.

Dagusan de Souza Lima, o pai de Dairan, aparece sempre em suas falas como alguém que freava sua rebeldia pela poesia (e por namorados). Ela diz e repete que perdoou o pai.

– Ele tinha expectativa alta em relação a minha pessoa e eu não me adequava a nenhuma religião, não acreditava muito em nada, mas adorava escrever e reescrever fotonovelas.

Dairan deve lançar seu primeiro livro em breve, pelo selo literário goiano Nega Lilu.

– Não sei se sou a poeta que você procura.

Sei que é.

Ela sempre afirma que é muito triste nos seus textos, fala do vazio. Durante a conversa, uma notificação aparece no Facebook. Um poema que Dairan havia acabado de compartilhar e me marcar dizendo:

– Tá vendo como sou pessimista, dramática, Walacy?

Solidão

Vede essa folha em branco:

vou sujá-la com meu

desamor,

minha solidão.

A essa hora vazia,

estou só

em companhia

de mim mesma,

das inúteis recordações do passado.

– Vou molhar as plantinhas.

É o que me resta.

Atravesso a sala -

adentro o azul do céu -

pego o regador,

esguicho a água

e me esqueço que existo.

Nesse fecundo momento,

só água e planta

se comunicam,

anulando

o calor da tarde.

Dairan Lima

A poeta também fala outras constâncias nos poemas. Lá da época que seus poemas eram compartilhados nos boletins da faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), quando ainda estava no curso.

– Quando saía o boletim, eu era supercomentada, isso de boca em boca. Também era polêmica, era modelo-vivo do Instituto de Artes da Federal e usava palavras nos poemas como orgasmo, punheta, masturbação.

*

Siririca. Melhor: Siririca Poética.

– Eu tento escrever não pra criar, mas pra desconstruir o gênero. Não se resumir a uma genitália - diz Izabella Devoti, outra poeta e feminina dos pés à cabeça.

Com gestos abertos, fala do que se trata o Siririca Poética. Explica que é uma página do Facebook com os poemas que ela escreve, mas não se trata só disso. Afirma que é um outro “eu”, uma consciência criativa, pois ela não escreve fora disso, em outro contexto, mas não se trata só disso. Para Izabella, a poesia é uma forma de se expressar, de narrar um tempo determinado, inventivo ou não.

Sentada na minha cama, na minha frente, ela bebe um vinho que trouxe para dividirmos. Enquanto damos pequenos gluts no bico da garrafa, vou especulando qualquer coisa sobre a relação da mulher e da literatura. Ela ajuda:

– A mulher é silenciada. Ela não é educada para se expressar. Escrevendo, ela rompe essa expressão.

A poeta acende um cigarro e fala sobre a questão de gênero nos seus poemas.

– Quem escreve é uma mulher, portanto, estigmatizada, mas o que escrevo não se trata só disso.

Peço que ela escolha um poema da página que exprima isso tudo e também que ela goste. “Do desespero”:

Das velhas que aspiram a inocência e carne dura das jovens e das jovens que se sentem avacalhadas pela sua insegurança e inocência. Dos becos, bares; das praças, avenidas, terminais e rodoviárias. Rosa só quer dar a si mesma e esvair-se nessa suruba de humanidades demasiado humanas dessa cidade cinza cheia de falsas possibilidades. Rosa despreza essa moral enfadonha e sente o peso da maldade dos olhares que a invadem sem pedir licença. Rosa não é sozinha a protagonista dessa história. Tem também a Beta que não sabe se escreve pra gritar ou silenciar a sua dor de segundo sexo. Sexo que não é sexo. É só a porra de uma genitália que carrega a culpa do pecado inicial e que segundo dizem são capazes de mover montanhas. Você tem medo é que a minha buceta te coma, tem medo. Você a julga como o enigma do mito da esfinge, e se não julga: deveria.

*

“Poetiza é o caralho/ Respeitem o soutien / Que agasalha meu peito vário / Sou poeta ETA ETA / Até que provem o contrário”. Dayse Kenya era amiga do poeta Pio Vargas, grande nome da literatura goiana. Por volta de 1987 e 1990 um bando de poetas e loucos seguiam o escritor por bares e locais de boêmia em Goiânia. Escrevendo e descrevendo esse momento do mundo, Dayse afirma ser uma das únicas sobreviventes.

Pergunto se podemos marcar um dia para conversar sobre sua poesia, em algum bar talvez. Ela responde depois de um tempo: “vem pra cá agora!”. E repete que quer me ver declamar seu poema. “Haja saco. Ah, já saco” e continua a me convidar pra uma visita. Em seguida, um minuto depois, na verdade, ela me manda o seu livro que será publicado em breve, O Talhe, e me pede pra escolher um poema pra declamar durante o lançamento. Escolhi:

CÉTICO PORQUE CÉTICO

No princípio, era o verbo

porra nenhuma!

Nem porra nenhuma também.

A porra pra ser princípio

precisa do dono que a mantém.

Já o verbo,

como poderia estar lá

tendo que empurrar o verbo empacar?

O pretérito perfeito

poderia até sonhar.

Mas o futuro do presente!

Há! há! há

Dayse uma vez me ouviu declamar um poema de Miró da Muribeca, chamado Cotidiano. O principal verso é repetido várias vezes na performance: “você nunca pirou?”. Dayse respondeu na hora:

– Eu nunca precisei.

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