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Estudo genético do brasileiro mostra miscigenação menor que imaginada

Nem tão misturados assim

RIO - O Brasil é um “caldeirão de raças”, onde brancos, negros e índios se uniram numa receita que formou uma das populações mais miscigenadas do planeta. Esta imagem idílica de uma verdadeira “democracia racial” brasileira, no entanto, está longe de ser acurada. Depois de vários estudos demográficos, feitos com base em dados de censos e outros levantamentos populacionais, indicarem uma forte tendência dos brasileiros em se relacionarem e casarem preferencialmente dentro de seu grupos étnicos e socioeconômicos ao longo da História do país, algo que só vem mudando sutilmente nas últimas décadas, agora a mais ampla e detalhada análise genética da ancestralidade da população brasileira realizada até o momento vem reforçar esta visão. Mostra um nível de miscigenação menor do que se poderia imaginar caso o mito fosse verdadeiro.

A partir de dados disponíveis sobre 6.497 indivíduos das três chamadas coortes que fazem parte da iniciativa EPIGEN-Brasil (projeto que visa investigar a predisposição da população brasileira em desenvolver doenças complexas tendo em vista justamente seu nível relativamente alto de miscigenação e o maior do tipo na América Latina), cientistas liderados por Eduardo Tarazona Santos, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), identificaram o quanto do genoma de cada um deles tem origem europeia, africana ou nativa das Américas (ameríndia).

Como esperado, os genes da população da primeira coorte — 1.309 indivíduos de Salvador (BA) — apresentam uma grande ancestralidade africana (50,8%), seguida da europeia (42,9%) e ameríndia (6,4%). Já na segunda coorte, composta por 1.442 pessoas da pequena cidade de Bambuí, no interior de Minas Gerais, a grande maioria de seu genoma é de origem europeia (78,5%), com uma pequena contribuição africana (14,7%) e ainda menor ameríndia (6,7%). Por fim, na terceira e última coorte, formada por 3.736 indivíduos nascidos em Pelotas em 1982, a influência genética europeia também é grande (76,1%), com uma contribuição africana e ameríndia um pouco maior do que na de MG, de 15,9% e 8%, respectivamente.

Mais do que isso, no entanto, os pesquisadores identificaram nestes dados genéticos a mesma tendência ao relacionamento intragrupos étnicos e socioeconômicos vista nos estudos demográficos. Esta correlação foi mais forte nas coortes de Bambuí e Pelotas, o que os cientistas destacam ser consistente com o fato de uma maior proporção de indivíduos nestas populações ter uma ancestralidade predominante, europeia ou africana, mais clara do ponto de vista fenotípico — isto é, características morfológicas como a cor da pele, dos cabelos e dos olhos. Já em Salvador, os indivíduos da coorte são geneticamente mais misturados, o que se credita tanto a um histórico mais longo de miscigenação quanto ao fato de a amostra ser composta por pessoas de baixa renda com um status socioeconômico mais homogêneo.

— Somos misturados, mas não tanto quanto imaginávamos — diz Tarazona, principal autor de artigo sobre o estudo, publicado ontem no conceituado periódico científico internacional “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS). — Não diria que nossos resultados derrubam o mito da democracia racial brasileira, até porque ela não está tão presente assim, mas certamente nossa pesquisa relativiza ou modera esta imagem. Do ponto de vista histórico, nossa miscigenação difere da de outros países como os EUA e a África do Sul, onde a segregação foi imposta por lei, mas mesmo assim o Brasil não é uma democracia racial perfeita. Seja por questões geográficas, históricas ou aspectos culturais, aqui também existe uma tendência de as pessoas com origem mais europeia se casarem com outras de origem mais europeia, e de pessoas com origem mais africana se casarem com outras de origem mais africana.

Tendência em mutação

Esta tendência, no entanto, está mudando aos poucos. Em estudo publicado em 2013, os pesquisadores Kaizô Beltrão, da FGV, e Sonoe Sugahara e Moema De Poli, do IBGE, mostraram que a proporção dos casamentos interraciais, isto é, entre pessoas de aparentes diferentes etnias, no Brasil saiu de 8% em 1960 para 31% em 2010. Números parecidos foram encontrados por Carlos Antonio Costa Ribeiro e Nelson do Valle Silva no artigo “Cor, Educação e Casamento: Tendências da Seletividade Marital no Brasil, 1960 a 2000”, publicado em 2009 na “Revista de Ciências Sociais”, no qual identificaram uma mudança também na chamada “endogamia educacional”, com cada vez mais pessoas se casando com outras de nível de instrução diferente.

Mas o estudo genético revelou ainda outras curiosidades sobre a formação da população brasileira que batem com os relatos históricos. A análise dos genes de origem europeia dos três coortes mostrou, por exemplo, que enquanto em Salvador esta ancestralidade é basicamente ibérica, ou seja, portugueses e espanhóis, em Pelotas e Bambuí há contribuições significativas de populações de outras regiões da Europa e até mesmo do Oriente Médio.

— Isto é um reflexo direto da política de estímulo à migração de italianos, alemães e outros a partir da segunda metade do século XIX e início do século XX com a qual os governos da época tencionavam “branquear” a população brasileira — lembra Tarazona.

Além disso, o estudo identificou duas diferentes fontes de genes africanos bem divididas entre as coortes. Enquanto em Salvador esta herança é basicamente iorubá e mandenka, populações do Oeste da África que formaram o grosso da primeira “onda” da diáspora africana nos tempos coloniais, desembarcada nos portos da região da então capital do país, similar à vista em estudos genéticos do tipo com afro-americanos do Caribe e dos EUA, em Bambuí e Pelotas os genes vêm principalmente dos povos bantu de Moçambique, trazidos para o Brasil em um segundo momento via Rio de Janeiro.

— Mesmo com a tentativa de “embranquecimento”, as populações do Sul e do Sudeste trazem esta assinatura genética do Leste da África quase única e que não se vê em Salvador ou entre os afro-americanos nos EUA — conta Tarazona. — E como o Brasil não tem os registros históricos destes desembarques, destruídos após a proclamação da Lei Áurea, os estudos genéticos podem ajudar a preencher esta lacuna.

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