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COTIDIANO

Divina fé começou com medalhão

A festa de Trindade é um dos mais representativos eventos da fé católica. Significa–em poucas palavras–a travessia por meio da crença em direção ao numinoso.

Ou melhor: travessia da vida terrena em busca da consagração com o criador. E toda a expectativa de sagração é o que move o fiel, que segue incólume por 18 quilômetros com vigor e disposição.

O tema deste ano é “Maria: serva humilde e fiel ao Pai Eterno”, em clara orientação da Igreja Católica para resgatar a imagem de Maria, muitas vezes esquecida pelos fiéis.

Por isso, neste final de semana tantas pessoas caminham pela Rodovia dos Romeiros–palco da maior obra pública de Goiás, assinada pelo artista plástico Omar Souto, que representa a via crúcis e, afinal, a chegada do fiel ao território sagrado que possibilita a renovação da crença no Divino Pai Eterno, na noção católica de trindade e no poder da oração e intermediação de Maria.

Desde quinta-feira, 22, romeiros já seguem em fila dia e noite. Alguns oram baixo, outros fazem da fé a simples caminhada. A caminhada é rítmica, sincopada, realizada entre paradas, percepções dos painéis de Omar e contemplação do céu.

É nesta estrada – bem iluminada e com pavimentação irretocável – que cruzam pecadores. Todos eles, conforme as escrituras, buscam a salvação não por merecer, mas por decisão divina. Caminham ora em penitência ora para agradecer a graça – seja a aprovação em um vestibular seja a melhora na saúde.

Outros tantos optam em pagar a promessa antes do presente de Deus. “É na romaria, de fato, onde os goianos se ajoelham, pedem, imploram e agradecem”, diz a advogada Ana Alice Nogueira, que leva a filha do lado. “Vou assim, andando, e volto de carro. Meu filho vai me esperar lá no portal de entrada. Não vou à igreja não”, esclarece.

Ao lado dos festejos de Pilar de Goiás e Muquém, a celebração batizada de Festa do Divino toma corações e mentes dos goianos com sensibilidade e emoção. “É uma festa para avivar o católico e chamar atenção dos demais para algo belo e maravilhoso”, diz padre Luís Fernando.

Neste ano, a festa repete os mesmos dramas de 2016, quando a crise assaltou a esperança do brasileiro. A programação, todavia, segue com grade de vários eventos que ignoram a festa mundana das ruas, baseada no valor mental do dinheiro e no tilintar das moedas.

A capital da Fé terá dentre 10 e 12 missas ao dia até o final dos festejos. Nelas, grupos se revezam para louvar Deus e pregar. De fora, fieis entregam santinhos. Católicos tentam conquistar “almas”. Políticos aproveitam para tomar banho de povo.

Parte das acomodações dos hotéis já está tomada. Faculdades do município terminaram as provas mais cedo para que os moradores se preparassem espiritualmente e fisicamente.

Nesta sexta-feira, grupos atravessavam a romaria indistintamente. Um grupo chegava de São Paulo. Outro, composto por uma caravana de vereadores goianos, orava em voz alta. Da mesma forma, a romaria de prefeitos e lideranças, que seguiram no final da tarde o senador goiano Wilder Morais. E mais cedo, o governador Marconi Perillo, que sempre completa o percurso.

A partir deste sábado Goiânia vai se dirigir para uma cidade que um dia se chamou Barro Preto, distrito de Campinas. Nela, gente de todo tipo, inclusive batedores de carteira, que não perdoam os fieis menos precavidos. Por isso a Polícia Militar orienta a todos que visitam a festa mais cuidado com selfies e aberturas de carteira na multidão.

RUPTURA

A louvação ao Divino Pai Eterno marca uma ruptura na tradição política de Goiás. Os festejos de Trindade celebram a chegada de uma noção mais civilizada de comunidade e ao mesmo tempo da prática da Justiça. Antes, a religião do distrito e depois município era tocada pelos coronéis. Com a introdução da igreja na vida social, a Festa do Divino tornou-se celebração popular mediada pelas autoridades civis – incluindo a igreja. As famílias armadas perderam a força da coação e o privilégio de tocar as almas.

MEDALHÃO

Pelos relatos dos moradores de Trindade e documentos consultados pelo DM no município, dois camponeses, que também atuavam como garimpeiros, marido e mulher, Constantino Xavier e Ana Rosa, encontraram uma medalha com a gravura do Divino Pai Eterno – justamente a concepção ao Deus Pai que teve início em 1840. Naquele ano o casal que encontrou a imagem da chamada Santíssima Trindade tornou-se celebridade no arraial. Todos queriam ver a medalha.

O objeto, encontrado após Constantivo dar uma enxadada e tocar algo forte, mostra Virgem Maria coroada nos céus. É o mesmo ‘leitmotiv’ religioso que surge em tantas outras narrativas clássicas e autóctones – como, por exemplo, a tradição mexicana de Nossa Senhora Guadalupe. A diferença é o motivo e o caráter menos prosaico quanto a origem da medalha.

Oito anos depois da descoberta, Rosa e Xavier decidiram construir uma capela coberta por folhas de buriti. Nela, o medalhão ficaria visível para todos fieis. Por fim, para fechar o ciclo em defesa da manifestação religiosa, o casal pediu para o maior escultor da época, o célebre José Joaquim da Veiga Vale, que criasse uma réplica maior da imagem. É a partir da adoração ao símbolo que o povoamento da região se expande e torna popular a festa de Trindade.

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Religião movimenta comércio e sustenta município

Trindade tem 96 anos e se destaca pela religiosidade e solidariedade. É lá que está, por exemplo, a Vila São Cottolengo, cuja missão principal na década de 1950 era hospedar e cuidar de pessoas necessitadas.

Nas últimas décadas, indústrias de refrigerante e confecção tornaram o município ainda mais desenvolvido. Todos os fatores juntos contribuíram para que a cidade ampliasse sua vocação de polo religioso e industrial.

Nos últimos anos, o município aprimorou seu legado histórico com a criação de um polo hoteleiro e avenidas que abrigam bares e restaurantes movimentados.

Conforme a pesquisadora Márcia Alves Ribeiro Carvalho, que investigou a festa para produção de um mestrado em Ciências da Religião, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), a Festa do Divino mantém a tradição apesar do avanço da modernidade: “A história da devoção ao Divino Pai Eterno em Trindade de Goiás iniciou-se em uma região isolada e estagnada economicamente, em meados do século XIX, pelo fato de o povo que nela vivia, em extrema miséria e totalmente carente, ter se apegado ao Divino Pai Eterno, a fim de ter suas necessidades supridas”.

A questão econômica, portanto, levou os moradores a desenvolverem uma religiosidade mais saliente do que nas demais regiões de Goiás. O caráter telúrico da religião é que a torna tão presente na realidade do município.

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