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COTIDIANO

Dívida pública: a mão morta que estrangula o País

Em sua edição de 26 de de­zembro, O Popular publica reportagem, assinada por Fabiana Pulcinelli, tendo a dívi­da pública de Goiás como tema. A matéria falha em vários sentidos. A reporte limita-se a expor alguns da­dos que, longe de explicar a dívida, escondem o essencial. As análises ficam por conta do senhor Silvio Vieira Lima, burocrata da Secreta­ria da Fazenda, chefe da repartição que gerencia a dívida.

Como se estivéssemos numa gincana para se saber qual dos go­vernadores endividaram mais o Es­tado, O Popular destaca Marconi Perillo como campeão. Governan­do Goiás pela quarta vez, seria im­possível que não fosse. O assun­to “dívida goiana” sempre deu azo a todo tipo de demagogia barata. Opositores adoram lançar à face dos governantes a “herança mal­dita” que deixaram aos sucessores. O próprio Marconi, quando fazia oposição aos governos do PMDB, não se fez de rogado e usou abusi­vamente do problema do endivida­mento como retórica de guerra po­lítica. Hoje em dia, volta-se contra ele o mesmo discurso leviano que, ao invés de buscar soluções para o problema, reduzem-no a uma questão moral de péssimo gosto.

Nenhum governador, de Otávio Lage a Marconi Perillo, passando por Leonino Caiado, Irapuan Cos­ta Júnior, Ary Valadão, Iris Rezende, Henrique Santillo, Maguito Vilela, nenhum governador, repito, fez dí­vida para jogar dinheiro para cima. Os empréstimos pagaram as estra­das, as pontes, as usinas hidroeléti­cas, os hospitais: enfim, a infraestru­tura e outras benfeitorias que não poderiam ter sido feitas apenas com as receitas correntes. Nenhum go­vernador, ou ex-governador, mere­ce ser insultado em virtude do en­vidamento do Estado.

Segundo a reportagem de O Po­pular, Goiás fecha 2017 com uma dívida consolidada de 19,45 bilhões de reais. Mostra um quadro evoluti­vo desta dívida, partido do ano 2000, quando, segundo o gráfico, a dívida era de 8,36 bilhões de reais. Como ela pulou de 18,3 para 19,4, isto não é explicado. Aliás, não é sequer cita­da a fonte desses números.

Mas vamos seguindo. A mesma matéria relaciona os “empréstimos adquiridos nas últimas gestões”. Co­meça com o governo de Maguito e vai até os dias de hoje. Somando to­das as operações, desprezando-se a inflação do período, temos um to­tal de 7,63 bilhões de reais. Esta é, portanto, a dívida total do Estado referente a operações financeiras realizadas nos últimos 18 anos. Se­gundo o jornal, somente o governo de Marconi agregou ao estoque da desta dívida mais de cinco bilhões. Vence, portanto, a gincana.

Mas a gincana em questão é mera diversão para burros. A ques­tão é: por quais artes mágicas um Estado que, nos últimos anos to­mou emprestado algo em torno de 7,63 bilhões de reais, está devendo 19,45 bilhões? Ou seja:mais da me­tade. Quando fazia oposição, Mar­coni acusava Maguito de lhe dei­xar uma dívida de algo em torno de 9 bilhões. Suponhamos que o governo Marconi tenha pro­duzido um endividamento de 6 bilhões, o que não é exato – o vor é bem menor -, mas va­mos argumentar nessa linha. O endividamento seria de 15 bilhões. De onde surgiram os 4,5 bilhões? Esta pergunta não foi feita. Nunca é feita.

Outra pergunta que não se faz – eu já tentei obter este número juntos às autorida­des, mas nunca obtive a in­formação – é: quanto o Esta­do já amortizou, até hoje, de sua dívida? Acho que terei que mandar um ofício à CIA para obter a resposta.

Desde meados do gover­no Henrique Santillo o Esta­do de Goiás vem pagando, todo mês, uma parte da dívi­da. O primeiro termo assina­do entre o governo do Estado e o governo federal, estipula­va um prazo de trinta anos para o pagamentos parcelado da dívida, à base de 16% da receita líquida. O saldo devedor deveria ser renego­ciado mais tarde. Depois vieram no­vas pactuações e este índice baixou. Mais de trinta anos depois, Goiás continua devendo.

Como se explica este transordi­nário fenômeno de uma dívida que cresce à medida em que vai sen­do paga? Isso também não é expli­cado, embora os estudiosos do as­sunto já tenham matado a charada faz tempo.

A ESTRUTURA DA DÍVIDA

O conceito de dívida consoli­dada por ser bastante funcional, e muito eficiente para embasar dis­cursos oposicionistas. Mas é um conceito enganador. A dívida goia­na possui três categorias de credo­res: o Tesouro Nacional, as institui­ções oficiais de crédito (BB, CEF, BNDES etc), e os bancos privados. A reportagem de O Popular não faz esta análise. Vamos fazê-la. Temos que nos servir de dados do Banco Central, disponíveis a qualquer um que saiba ler no site da autarquia.

De acordo com o BC, os dados referentes a Goiás, até outubro des­te ano (novembro de dezembro ain­da não foram contabilizados) são os seguintes: total devido ao Tesou­ro nacional: R$ 8.827.391.621,04; total devido às instituições ofi­ciais: R$ 9.557.631.964,04; to­tal devido às instituições priva­das: R$119.479.097,31; total geral R$18.504.502.682,39.

O número divulgado por O Po­pular, 19,45 bilhões. Pode ser uma projeção realizada pelos técnicos da Fazenda, já que não temos ain­da os resultados de novembro e de­zembro. Mas isso não é informa­do ao leitor.

O assim chamado âmago da questão é a dívida junto ao Tesou­ro Nacional, que equivale a quase metade da dívida total do Estado. Qual é a orgiem desta dívida? Sobre este pondo, voltaremos lá na frente. Há algumas considerações impor­tantes sobre a dívida que precisam ser feitas, embora ninguém faça.

A DÍVIDA E SEUS RELATIVOS

Quatro Estados – justamente os mais ricos – respondem por 83% de todo o débito com o Tesouro Nacio­nal. Entre os municípios, a concen­tração também é grande. Só a dívida do município de São Paulo é maior que a de Goiás. Goiás aparece em quinto lugar em termos absolutos. Alagoas é o Estado que possui o me­nor endividamento. Mas, enquanto a dívida de Alagoas representa 26% do PÌB alagoano, a dívida Goiana re­presenta apenas 12% do nosso PIB. Em termos relativos, Alagoas está pior do que Goiás.

Debater o endividamento dos Estados e dos municípios é levar o perfil da dívida e a concentração ao redor de uma meia dúzia de entes federados. De início, deve-se sepa­rar os valores que têm a União como credora e as dívidas junto a bancos privados, internos e externos. No caso dos Estados e especificamen­te da cidade de São Paulo, muito em função das renegociações fei­tas a partir da Lei 9.496/1997 (aí in­cluídas as dos bancos estaduais, por meio do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária – Proes) e da MP 2.185/2000 (para os muni­cípios), há um amplo predomínio dos débitos junto ao Tesouro Na­cional, em torno de 90%.

A dívida total dos Estados e mu­nicípios junto à União se aproxima do meio trilhão de reais, do qual cer­ca da metade pertence ao Estado de São Paulo (R$ 188 bilhões) e ao mu­nicípio de São Paulo (R$ 57 bilhões). Entre os Estados, 83% dos débitos concentram-se em apenas quatro unidades da Federação. Entre os municípios, os dez maiores deve­dores respondem por 95% do total.

O consultor legislativo do Sena­do, Josué Alfredo Pellegrini, que a anos estuda o problema, explica que, como tinham porte para ob­ter financiamento junto ao merca­do de capitais, eram os Estados com importante parcela da dívida na for­ma de títulos públicos, muito vul­neráveis aos aumentos da taxa de juros. Já nos Estados menores, no­tadamente do Nordeste, boa par­te do passivo tinha a União como credora, em condições menos su­jeitas às oscilações nas taxas de ju­ros, ainda mais após a renegocia­ção feita em 1993”, detalhou ele no estudo “Dívida Estadual”, de 2012,

Convém acrescentar o seguinte: Nos tempos da ditadu­ra, Estados e municípios obtinham dinheiro far­to junto à banca inter­nacional. Ju­ros quase simbólicos, conquanto variáveis, e prazos a per­der de vis­ta. Mas vie­ram as crises do petróleo, As praças de Londres e de Nmova Ior­que eleva­ram drastica­mente tuas taxas de juros. A dívida explodiu. O Brasil entrou em de­fault em l982. No final do governo Sarney, os credores externos impu­seram uma condição para retomar a negociação da dívida brasileira: a União teria que se sub-rogar cre­dor das dívidas dos Estados e dos Municípios. E assim se fez. A dívi­da externa brasileira foi renegocia­da. Sendo as negociações concluí­das no governo de Itamar Franco.

O Brasil trocou os antigos con­tratos por “bonds” negociáveis, com prazos variando de 10 a vinte anos e juros anuais de 4%, mais 10 anos de carência. Foi esta negociação que tornou viável o plano real. Outros “bonds” foram lançados, com pra­zos mais longos e a juros me­nores. A dívida junto ao FMI foi quitada. A dívida externa do Brasil, hoje, somando a do se­tor público com a do setor priva­do, dá pouco mais de 300 bilhões de dólares. Nossas reservas inter­nacionais já passam dos 380 mi­lhões de dólares. Se toda dívida ex­terna vencesse antecipadamente, nossas reservas internacionais res­ponderiam por elas com folga, e so­braria ainda muito dinheiro. É uma dívida virtualmente paga. No entan­to, até hoje a União cobra dos entes federados aquelas dívidas contraí­das lá atrás, nos tempos da ditadura.

A ORIGEM DA DÍVIDA

Nascida na ditadura, a dívida dos Estados e municípios foi agra­vada pelo Plano Real. As dívidas dos Estados e dos municípios co­meçaram a se cristalizar na década de 70, quando a gestão tributária centralizadora da União, no regi­me militar, comprometia a capaci­dade de gerar receita dos governos estaduais. Os empréstimos exter­nos se destacavam como principal fonte de financiamento dos Esta­dos, facilitados pela ausência de normas de transparência e de res­ponsabilidade fiscal.

“Ao se analisar as resoluções do Senado que autorizavam esses em­préstimos externos, constata-se que os crédito eram contratados sem a devida transparência, uma vez que os documentos omitem, na maio­ria das vezes, o agente credor e as condições dessas operações, como a taxa de juros incidente, as despe­sas operacionais, acréscimos e o nú­mero de parcelas da amortização”, leciona a coordenadora da Audito­ria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, um das maiores autori­dades e, ma­téria de dívi­da pública. A informação está no site da “Audito­ria Cidadã”

Na dé­cada de 80, as princi­pais fontes de financia­mento dos Estados pas­saram a ser a Caixa Eco­nômica Fe­deral e as chamadas Obrigações do Tesou­ro Nacional. Além des­sas obriga­ções, os esta­dos também eram autorizados a emitir títulos dos Tesouros estaduais. “A arbitra­riedade e a falta de transparência com que esses títulos eram emiti­dos contribuíram para a escalada da dívida mobiliária, o que mais tarde se tornou um forte argumento para a renegociação dessa dívida com a União”, descreve ela.

A partir de 1983, afetados pelos efeitos do acordo de socorro econô­mico entre o Brasil e o Fundo Mo­netário Internacional (FMI), os es­tados foram até “incentivados ao endividamento pela União, como forma de financiar o déficit públi­co gerado pela política tributária”, completa Fatorelli. Por isso, nos dez anos seguintes, o cenário se agra­vou. Em seu estudo Dívida Esta­dual, Josué Pellegrini relata que a dívida líquida dos estados e mu­nicípios triplicou entre 1989 e 1998 (de 5,8% para 14,4% do PIB), res­pondendo por 39% de todo o en­dividamento público.

Todos os especialistas que a chegada do real, em 1994, seguida de outras medidas ado­tadas pela União, foi o ponto de viragem. A estabilidade da moeda acabou com os ganhos inflacioná­rios, forçando estados e municí­pios a uma abrupta e acentuada redução de receita.

“O controle da inflação acabou com a possibilidade de corroer o valor real das despesas públicas, de forma a acomodá-las às recei­tas disponíveis. O fator derradeiro para agravar a situação financei­ra dos Estados foram as elevadas taxas de juros requeridas para manter a inflação sob controle nos primeiros anos de vigência do Plano Real [taxas que incidi­ram sobre os títulos de dívida pú­blica]”, explica Pellegrini.

Fica clara, em vários documen­tos, a de responsabilidade do go­verno federal nas dificuldades financeiras enfrentadas pelos es­tados. O drama fiscal dos estados e do Distrito Federal agravou-se após a implementação do Plano Real, com a política monetária restritiva adotada pelo governo. O mercado passou a exigir taxas de juros cada vez mais elevadas. A combinação de juros altos com inflação baixa foi, segundo vários estudiosos, desatou a sangria do endividamento. Em novembro de 97, a inflação já estava em 0,17%. E a União, naquele mês, quando foi impulsionada uma série de assi­naturas de contratos de renego­ciação da dívida, estabeleceu uma taxa Selic anual de 45,67%.

A relação de causa e efeito está também evidenciada no relatório final da CPI da Dívida Pública da Câmara dos Deputados, de 2010: “O comportamento das dívidas es­taduais, antes de sua assunção pelo governo federal, foi afetado de ma­neira decisiva pela política de juros reais elevados implantada após o Plano Real e tornou inevitável um novo programa de refinanciamen­to, desta vez em caráter definitivo”.

Um dos primeiros setores dire­tamente afetados pela nova reali­dade de inflação perto de zero foi o bancário. Com dois programas sucessivos, o governo federal lan­çou operações de salvamento no setor privado (Proer, 1995) e no público (Proes, 1996), para con­tornar o risco concreto de insol­vência no sistema financeiro. Os empréstimos para socorro dos bancos estaduais responderam por 55% do valor total refinan­ciado pela União. Os bancos pú­blicos foram todos ou liquidados pu passados à inciativa privada, por decisão política da autorida­des monetária.

O assunto ainda hoje é polêmi­co, com gente concordando e gen­te criticando. Mas trata-se fato con­sumado. Bancos públicos já eram.

A VOZ DO CREDOR

O fundamental é que o rápido aumento da dívida estadual levou a União a renegociá-la, o que se deu com base na Lei 9.496/1997, estabelecendo o IGP como índice de correção monetária. É também uma discussão complexa a esco­lha dos índices de correção mone­tária da dívida. Em 1997 e 1998, até mesmo em 2006, o IGP era mais baixo que a Selic. Depois de 2007, a Selic passou a ser mais baixa na maior parte do tempo, mas o que é importante é que, em todos os anos, o IPCA foi mais baixo.

O secretário de Finanças da ci­dade de São Paulo, Marcos de Bar­ros Cruz, diz que em poucos anos o cenário mudou radicalmente. “Ocorreu uma inversão comple­ta. De um contrato onde, origi­nalmente, havia um subsídio da União para os municípios pode­rem equilibrar as suas finanças, inverteu-se a lógica e se passou a ter um contrato onde a União tem uma margem de lucro muito gran­de”, critica Marcos Cruz.

Na visão da Secretaria do Te­souro Nacional, o esforço valeu a pena. “Ao longo da existência dos programas de ajuste fiscal, por conta da adoção de uma postura consistente com a manutenção do equilíbrio fiscal e com a estabi­lidade macroeconômica, os resul­tados alcançados pelos estados foram significativos, em especial na redução do endividamento”, afirma, em seu site.

A STN sustenta ainda que con­sidera normal a revisão dos pro­gramas, que estaria de acordo com entendimento do governo federal de que deve haver compartilha­mento dos benefícios da estabi­lidade econômica entre os entes que se esforçaram e mantêm a si­tuação fiscal equilibrada.

No fundo, é tudo conversa mole. É papo de agiota. A dívida dos estados para com a Secretaria do Tesouro é impagável. A STN avalia, em documento público, que, lá pelo ano 2050, os estados ainda estarão amortizando a dí­vida. Uma dívida sem contrapar­tida, que já foi várias vezes pagas, e que cresce mais e mais por obra e graça de encargos financeiros draconianos, artimanhas contá­beis efeitos deletérios de medi­das do governo central nas eco­nomias estaduais

O Plano Real, que praticamen­te zerou a chamada receita in­flacionária; a Lei Complementar 87/1996, chamada de Lei Kandir, que reduziu o ICMS cobrado na exportação de produtos primá­rios e semielaborados; A adoção de taxas de juros básicas que se situavam entre as mais altas do mundo; e Mecanismos de res­trição ao crédito e aumento do compulsório bancário (retiran­do dinheiro em circulação), que inibiram a atividade econômica e deprimiram as receitas – tudo isso produziu o brutal endividamento dos estados brasileiros.

A solução política Não há so­lução contábil para a dívida dos Estados. Apesar de injusta, por­que corrigida por critérios típi­cos de agiotagem e não ter con­trapartida, esta é uma dívida da qual nenhum governante da União abre mão. Parte dela é re­passada aos credores da dívida pública interna, que é uma das maiores do mundo e já vai se aproximando de algo em torno de 100% do PIB. Os grandes cre­dores, que são os bancos, lutam pelo recebimento dessa dívida para remunerar seus clientes, aqueles correntistas que fa­zem aquela aplicaçãozinha su­gerida pelo seu gerente.

A lógica da economia bra­sileira, hoje, é esta: o produto de todo o esforço da nação é direcionado para o pagamen­to da dívida pública. É um sistema perverso, que empo­brece o país e, segundo Maria Lúcia Fatorelli, é a verdadei­ra corrupção que vai a pas­sos largos corroendo as bases econômicas da nação.

Impagável a dívida, pelas regras impostas autoritaria­mente aos devedores, a solu­ção posta é o não pagamen­to. A solução é o repúdio da dívida pelos estados. Mas isto exigiria dos governa­dores um trabalho intenso de articulação política que pressupõe a existência de um lí­der regional capaz de, apoiado nas massas populares, condu­zir a luta dos estados contra a União. Este líder talvez ainda nem tenha nascido.

  Outra pergunta que não se faz – eu já tentei obter este número juntos às autoridades, mas nunca obtive a informação – é: quanto o Estado já amortizou, até hoje, de sua dívida? Acho que terei que mandar um ofício à CIA para obter a resposta”

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