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Jóquei Clube de Goiás pode se transformar em um templo religioso

Fundado em 1938, o Jóquei Clu­be é tão antigo quanto Goiânia. Sendo apenas cinco anos mais jovem, o então chamado “Automóvel Clube” nasceu seguindo a ânsia pela construção de uma capital moderna, se voltando para a exploração da modernidade dos automóveis dos anos 30. Em 43, em busca de recursos do governo federal, mudou seu nome para Jóquei Clube de Goiás. O local funcionava como espaço de lazer destinado à alta classe goianiense, localizado entre a Avenida Anhanguera e a Rua 3, ao lado do Teatro Goiânia.

Ao longo de seus 75 anos de histó­rias, muitas memórias foram feitas, eventos culturais marcaram a identi­dade da cidade e o fomento ao espor­te, ainda que restrito, produziu gran­des equipes de basquete. O Jóquei, contudo, chega a 2017 com os por­tões fechados e uma dívida estimada pelo atual presidente do clube, Ma­noel Mota, de R$ 42 milhões. O mon­tante seria fruto de dívidas trabalhis­tas e previdenciárias de até 30 anos e uma parceria não cumprida, além dos déficits com água, energia e IPTU.

A solução encontrada pela gestão foi a venda do local, que já recebeu uma proposta da Igreja Universal. A notícia foi motivo de polêmica por grupos que acreditam que o Jóquei faz parte da memória e história da capital goiana. Com projeto arqui­tetônico de Paulo Mendes Rocha, um dos maiores arquitetos do Bra­sil e do mundo, a sede foi construí­da dentro de um movimento radical de arquitetura da época, conhecido como brutalismo, que destaca o con­creto armado, vigas e pilares.

“O que está em defesa é um edifí­cio emblemático da arquitetura e en­genharia brasileira. Essa tendência do brutalismo é muito importante para a engenharia, e ela é, talvez, umas das maiores obras da época”, afirma o ar­quiteto e especialista em responsabi­lidade social Alexandre Perini. Dife­rentemente da atual sede, a primeira é considerada pouco expressiva, com baixa relevância histórica.

Perini lembra que o prédio já é pa­trimônio histórico e cultural pela sua alta relevância arquitetônica, porém, é uma propriedade privada. “Muita gente está confundindo os amores pelo clube, por ter vivido a juventu­de naquele local, querendo que ele volte a ser como era antes. O foco é a preservação do edifício por conta do seu valor histórico e arquitetôni­co. O resto é assunto para os sócios, para a população o que interessa é a preservação do edifício”, completa. Além do edifício na Avenida Anhan­guera, o complexo Jóquei Clube de Goiás também possui o Hipódromo da Lagoinha, localizado na Vila Lucy, na região Sudoeste da capital.

“Todo o patrimônio, tanto daqui quanto da Lagoinha está piorando. Nós temos uma grande área no La­goinha onde pretendemos, se der certo a questão da venda, erigir um novo clube, que esteja de acordo com a nossa realidade atual”, explica o pre­sidente, Manoel Mota. Sobre a pos­sível demolição do edifício em con­sequência da venda, Mota diz que, assim como as pessoas que com­põem a cidade mudam, a arquitetu­ra também precisa mudar. “As estru­turas da cidade têm que ter vida, elas sao mutáveis. Se até as pessoas não são as mesmas, porque os prédios e as edificações têm que ser as mes­mas?”, questiona. “A gente fica preso ao passado, isso faz com que os es­paços urbanos morram, e o Jóquei é um espaço urbano morto”, conclui.

O Conselho de Arquitetura e Ur­banismo de Goiás (CAU/GO) emi­tiu uma nota, no último dia 30, se manifestando contrário à demoli­ção do prédio. “Independentemen­te de quem venha a adquirir o local ou do uso que ele venha a ter, é pri­mordial que seja garantida a integri­dade da estrutura da edificação tal qual ela é hoje”. Na nota, o CAU tam­bém ressalta que o edifício é um dos maiores patrimônios históricos e ar­quitetônicos da capital e do Estado.

No documento, o Conselho tam­bém destacou que a obra foi proje­tada por Paulo Mendes da Rocha, “maior nome vivo da arquitetura brasileira”. Manoel Mota discorda. “Na verdade, a única coisa que tem do Paulo Mendes é o vão central. Há muitos anos estão tentando revita­lizar a Anhanguera. Daquele ponto para baixo é uma via morta, qual­quer tipo de construção vai revitali­zar aquela região”, argumenta.

VIDAS JOQUEANAS

Alessandra Teles, de 50 anos, filha do escritor goiano José Mendonça Teles, é uma das pessoas que reser­vou boa parte das memórias de sua infância dentro do Jóquei. Atraído pelo glamour do clube, seu pai, por vezes, pulava o muro do local para ter acesso aos eventos que ali acon­teciam. Em todas as tentativas, era retirado pelos seguranças, os cha­mados leões de chácara. Anos de­pois, Mendonça Teles se tornou só­cio e passou a desfrutar do local, juntamente com sua família.

Entre o fim da década de 70 e o início de 80, Alessandra passou sua infância entre piscinas e quadras da­quele local. “A gente ia para a esco­la pela manhã e à tarde estávamos no Jóquei, praticando atividades es­portivas, encontrando amigos e co­nhecendo novas pessoas”, afirma a artista plástica. O local funcionava também como espaço de fomento a habilidades que poderiam nun­ca serem descobertas. No caso de Alessandra, até seu aniversário de 15 anos aconteceu no clube, em 1982.

“Foi lá que descobri minha pai­xão pelas piscinas. Eu tinha 14 anos quando aprendi e até hoje nado. Até hoje pratico esportes e frequento academia por conta do Jóquei”, con­ta a fotógrafa Cidinha Tôrres, de 58 anos, integrante da Sociedade Goia­na Art Decò, que também guarda as principais memórias de sua infân­cia naquele local. Cidinha, que co­meçou a frequentar o local em 1975, foi uma das fundadoras dos Inimigos do Ritmo, um grupo musical que sur­giu dentro do clube e reuniu jovens amantes de música. Eles se reuniam e ensaiavam no Jóquei e, aos finais de semana, tocavam nos bares de uma jovem capital setentista.

Por muitos anos, o carnaval de Goiânia foi marcado pelas festivi­dades no Jóquei. Durante o dia, as crianças brincavam carnaval com as clássicas marchinhas e concursos de fantasia nas matinês. A noite, o espa­ço era reservado para os adultos. As festas duravam até o dia amanhecer, quando os últimos sobreviventes ca­minhavam da Avenida Anhangue­ra até a Rua 8, no trecho conhecido como Rua do Lazer, onde está, até hoje, o restaurante Zé Latinhas.

O local servia um famoso escal­dado e era destino certo dos foliões joqueanos. Alessandra viveu tanto as matinês quanto o amanhecer do dia na Rua 8. Os carnavais recebiam em média 3 mil pessoas, o que gera­va uma renda suficiente para cobrir as despesas do clube por cerca de 8 me­ses. Uma série de acontecimentos fi­zeram com que, não só o carnaval, mas o Jóquei inteiro, se transformas­se em páginas de um livro de história.

Professor de História da Universi­dade Estadual de Goiás (UEG), Eliézer Cardoso, autor do livro “História cul­tural de Goiânia”, destaca a importân­cia do lazer para a capital. “As formas como as pessoas se divertem dizem muito sobre a história de uma cida­de. No caso de Goiânia, o lazer é um importante documento sobre a cultu­ra da cidade”, afirma. Nos seus primei­ros 30 anos, quando possuía cerca de 40 mil habitantes, Goiânia tinha uma sociabilidade provinciana.

“Nesse período, os pobres se di­vertiam principalmente com banhos nos córregos e rios da cidade e com o futebol, famoso pela rivalidade entre Atlético e Goiânia. Já o lazer da elite constituía-se nas reuniões e eventos do Automóvel Clube, saraus no Pa­lácio das Esmeraldas, espetáculos no Teatro Goiânia e o footing, uma es­pécie de passeio pela praça Cívica e Avenida Goiás”, explica Cardoso. En­tre as décadas de 60 e 80, a capital ex­perimenta um forte crescimento de­mográfico, chegando perto dos seus 1 milhão de habitantes.

“O lazer popular continua voltado para o futebol, agora Vila Nova e Goiás são os times mais expressivos. A cida­de expressa uma sociabilidade mais metropolitana, surgindo as boates, na região da Praça Tamandaré, volta­das para a juventude”, conta. Essa é a mesma época de ouro do Jóquei, que foi interrompida no final dos anos 80.

Independentemente de quem venha a adquirir o local ou do uso que ele venha a ter, é primordial que seja garantida a integridade da estrutura da edificação tal qual ela é hoje” Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU/GO)

 Revitalização é impossibilitada por dívidas

O Jóquei Clube de Goiás aos pou­cos foi sendo soterrado pelas dívi­das contraídas, que, ao longo de 30 anos, chegou ao montante de R$ 42 milhões. No final da década de 80, o local já dava sinais de abandono. Em meados de 1990, grandes shoppings começaram a ser erguidos na capi­tal, juntamente com megaempreen­dimentos residenciais. As dívidas mi­lionárias e as novas formas de lazer da classe média goiana transformaram o Jóquei em um espaço esquecido. Hoje, o edifício está à venda.

A decisão aconteceu após uma as­sembleia realizada com os sócios, que deliberou pela venda do espaço. A ou­tra proposta apresentada pela gestão era de um rateio da dívida entre os cer­ca de mil sócios, que resultaria numa despesa de R$ 40 mil para cada as­sociado. A assembleia foi motivo de questionamentos por parte dos só­cios, que alegam não terem recebido notificação. Alessandra Teles é uma dessas pessoas. “Eu não fui notificada de nada e olha que meu pai é um dos primeiros sócios de lá”, conta.

A assembleia que decidiu pela venda contou com 20 pessoas, das quais 11 votaram a favor, e nove, con­tra. De acordo com o presidente Ma­noel Mota, a assembleia seguiu todas as normas estatutárias: convocação via edital publicado em um jornal da capital, além do envio de telegrama. Alessandra alega não ter recebido cor­respondência sobre o caso.

Em 2008, a Faculdade Padrão e o Jóquei firmaram um contrato de parceria, com prazo de duração de 20 anos, que determinava uma tran­sação de direito privado, formalizan­do a transferência dos 2,2 mil títulos de sócio-proprietário à instituição de ensino, mediante o recebimento de cerca de R$ 10 milhões. Em 2014, o juiz Jair Xavier Ferro, da 10ª Vara Cí­vel, declarou nulo o acordo firmado entre as partes. Segundo o juiz, a par­ceria contrariava o limite de cem títu­los de sócio-proprietário que podem ser vendidos para cada pessoa, esta­belecido pelo estatuto.

De acordo com o presidente Ma­noel Mota, essa parceria frustrada foi um dos principais fatores que deter­minaram o afundamento do Jóquei em dívidas. Atualmente, a maior par­te dos sócios são remidos, ou seja, não pagam taxas mensais ou anuais, por terem comprado uma cota no mo­mento do associação.

A venda envolve a possibilidade de demolição do local pelo futuro proprietário, o que tem gerado rea­ções, que pedem pela revitalização e tombamento do local. A lei que estabelece o patrimônio histórico e cultural, de 1937, determina que um bem pode ser tombado quan­do “sua conservação seja de inte­rêsse público, quer por sua vincula­ção a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico, etnográfico, bi­bliográfico ou artístico”. O Institu­to do Patrimônio Histórico e Artísti­co Nacional (Iphan), se posicionou contrário à construção de um tem­plo religioso no local.

Sobre um possível tombamento do edifício, Manoel Mota diz que não resolveria o problema das dí­vidas. “Essa solução de tombamen­to não contempla por que o tomba­mento não exime os déficits, tanto é que o hipódromo da Lagoinha é tombado e, mesmo assim, possui 20 milhões de déficit de IPTU”, afirma. Membros da sociedade, que rea­lizaram um protesto em frente ao Jóquei no último domingo, 3, estão organizando um novo ato, no mes­mo local, para o dia 17. “Precisamos que a população pioneira de Goiás tenha conhecimento da importân­cia desse edifício para que possa­mos contribuir com a não demoli­ção do Jóquei”, diz a chamada do ato em evento do Facebook.

Sobre a possibilidade de demoli­ção, o presidente disse que isso não compete a ele. “O Jóquei é uma socie­dade privada e os donos, na forma do estatuto, resolveram vender. Não sei se vai demolir, mas se você tem um imó­vel e vai vendê-lo, você não vai dizer para o comprador o que ele vai fazer”. Ele também descarta a possibilidade de que a prefeitura ou o governo assu­mam a dívida. “O poder público está com um problema de caixa para re­solver, são questões muito mais im­portantes do que garantir esse espa­ço para sócios e público”, argumenta.

A proposta de revitalização do lo­cal, feita por membros da sociedade interessados no caso, inclui a transfor­mação do local em um espaço cultu­ral. Para o arquiteto Alexandre Perini, a ideia é insuficiente porque a região do Centro já possui espaços cultu­rais como o Teatro Goiânia, Centro de Convenções, Grande Hotel e Vila Cultural Cora Coralina. Segundo Pe­rini, o problema não é falta de espaço, mas sim falta de investimento públi­co. “O jóquei pode se tornar um cen­tro de prestação de serviços sociais para a comunidade”, opina.

Ainda de acordo com Perini, exis­te uma um forte interesse no espaço, que tem condições favoráveis a gran­des empreendimentos. O arquite­to se refere à Avenida Anhanguera, que liga os extremos Leste e oeste da Grande Goiânia. “Qualquer coisa que for montada ali consegue atingir pes­soas de Goianira, de Trindade. Essa é a grande coisa a ser observada, do ponto de vista do centro de Goiânia”, pontua, chamando atenção para in­tervenção da prefeitura no processo de revitalização da região.

O professor Eliézer Cardoso tam­bém chama atenção para importân­cia da revitalização da região central da capital. “A classe média se isolou nos condomínios fechados, nos sho­ppings e nos empreendimentos par­ticulares. Não há mais um lazer cole­tivo, com exceção dos parques. Aliás, os parques e o centro da cidade são duas áreas para a expansão de um lazer coletivo”, alega.

A classe média se isolou nos condomínios fechados, nos shoppings e nos empreendimentos particulares. Não há mais um lazer coletivo, com exceção dos parques. Aliás, os parques e o centro da cidade são duas áreas para a expansão de um lazer coletivo” Eliézer Cardoso, professor de História   Precisamos que a população pioneira de Goiás tenha conhecimento da importância desse edifício para que possamos contribuir com a não demolição do Jóquei” Página Salve Jóquei

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