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COTIDIANO

Insônia versus depressão

A privação do sono causa problemas motores e cog­nitivos e pode até mesmo afetar o coração e outros órgãos a longo prazo. Por essa razão, em nenhuma situação a insônia pode trazer benefícios ao organismo. Entretanto, isso se aplica apenas a corpos e mentes saudáveis, pois num indivíduo depressivo, o efeito de uma noite em claro ou maldor­mida é diferente. Pesquisadores estudam esse efeito desde a dé­cada de 50, e agora novas aborda­gens utilizando a privação do sono como um de seus “ingredientes” estão ajudando a melhorar a vida de alguns pacientes.

A jornalista Linda Geddes, do site científico Mosaic Science, con­versou com especialistas sobre o assunto e mostrou como uma téc­nica que envolve não só a privação do sono, mas também o elemento químico lítio. Ela conta que, durante duas décadas, Francesco Benedetti, líder da unidade de psiquiatria e psi­cobiologia clínica do Hospital San Raffaele, em Milão, na Itália, vem investigando a chamada terapia de vigília, em combinação com exposi­ção a luz brilhante e lítio, como meio de tratamento da depressão.

“A privação do sono realmen­te tem efeitos opostos em pessoas saudáveis e com depressão”, diz Be­nedetti. “Se você estiver saudável e não dormir, pode perceber imedia­tamente como isso afeta seu hu­mor. Mas se você está deprimido, não dormir pode provocar uma melhoria imediata do humor e das habilidades cognitivas. O problema é que, quando você dorme para re­cuperar as horas de sono, há 95% de chance de uma recaída”, expli­ca. Mas é importante salientar: os especialistas dizem que ninguém deve tentar fazer isso sozinho, sem acompanhamento médico.

O efeito antidepressivo da pri­vação do sono foi publicado pela primeira vez em um relatório na Alemanha em 1959. Após isso, um pesquisador alemão chama­do Burkhard Pflug deu sequência às análises ao investigar o efeito em sua tese de doutorado e em estudos subsequentes na década de 1970. Ele confirmou que, ao privar siste­maticamente as pessoas deprimi­das do sono, ficar uma única noi­te acordado poderia ter um efeito abrupto contra a depressão.

Benedetti se interessou por essa ideia quando começava na psiquia­tria no início dos anos 90. O Prozac havia sido lançado apenas alguns anos antes, causando uma revolu­ção no tratamento da depressão, mas sem ser realmente testado em pessoas com transtorno bipolar. Be­nedetti diz que aprendeu desde en­tão que os antidepressivos são em grande parte ineficazes para pes­soas com depressão bipolar.

Benedetti, em sua entrevista à Linda Geddes, contou que seus pacientes precisavam desespera­damente de uma alternativa, e o supervisor de Benedetti, Enrico Smeraldi, teve a ideia de testar as teorias da terapia de vigília. “Sou­bemos que funcionou. Pacientes com essas terríveis histórias esta­vam ficando bem imediatamen­te. Minha tarefa era encontrar uma maneira de fazê-los permanecer bem”, relata o cientista.

ANTIDEPRESSÃO CONTÍNUA

A partir desses resultados positi­vos que o lítio entra na história. Be­nedetti e seus colegas passaram a procurar por formas de potencia­lizar e estabilizar esse corte na de­pressão. Alguns estudos americanos sugeriam que o lítio poderia prolon­gar o efeito da privação do sono, en­tão eles investigaram isso. Eles des­cobriram que 65% dos pacientes que tomavam lítio apresentavam uma resposta sustentada à privação do sono quando avaliados após três meses, em comparação com ape­nas 10% daqueles que não estão to­mando o medicamento.

Uma vez que uma pequena so­neca poderia prejudicar a eficácia do tratamento, eles também come­çaram a procurar novas maneiras de manter os pacientes acordados à noite e se inspiraram na aviação. Luzes brilhantes eram usadas para manter os pilotos alertas. O uso de luzes similares também ampliou os efeitos da privação do sono, em uma extensão similar à do lítio.

No final da década de 1990, eles estavam tratando rotineiramente pacientes com as três armas que ti­nham em mãos: privação de sono, lítio e luz. “Nós decidimos dar-lhes todo o pacote, e o efeito foi brilhan­te”, diz Benedetti na matéria. As pri­vações de sono ocorriam de duas em duas noites durante uma se­mana, e uma exposição à luz bri­lhante por 30 minutos por manhã continuaria por mais duas sema­nas – um protocolo que eles con­tinuam a usar até hoje. “Nós po­demos pensar nisso não como pessoas que privam o sono, mas como uma modificação ou am­pliação do período do ciclo sono­-vigília de 24 a 48 horas”, diz Bene­detti. “As pessoas vão para a cama a cada duas noites, mas quando elas vão para a cama, podem dor­mir o tempo que quiserem”.

O Hospital San Raffaele introdu­ziu pela primeira vez esse tipo de tratamento em 1996. Desde então, tratou cerca de mil pacientes com depressão bipolar, muitos dos quais não respondiam aos antidepres­sivos. De acordo com os dados do hospital, 70% das pessoas com de­pressão bipolar resistente a medica­mentos responderam à cronotera­pia tripla na primeira semana e 55% apresentaram melhora sustentada em sua depressão um mês depois.

O tratamento com a privação do sono tem outro efeito colateral positivo: diminui os pensamentos suicidas. Quando os antidepressi­vos funcionam, eles podem levar mais de um mês para ter um efeito e podem aumentar o risco de sui­cídio. A cronometria geralmente produz uma diminuição imedia­ta e persistente dos pensamentos suicidas, mesmo após apenas uma noite de privação de sono.

ORGANISMO COM DEPRESSÃO

A matéria deixa claro que ain­da não se sabe exatamente como o simples fato de permanecer acordado age sobre a depressão, muito em função do fato de que ambos os mecanismos – tanto a depressão quanto o sono – não são completamente entendidos pela ciência, já que abrangem vá­rias partes do cérebro. Porém, es­tudos recentes começaram a pro­duzir algumas ideias a respeito.

A atividade cerebral de pes­soas com depressão é diferente durante o sono e a vigília do que a de pessoas saudáveis. Durante o dia, os sinais que promovem o despertar do sistema circadiano – nosso relógio biológico interno de 24 horas – existem para nos aju­dar a resistir ao sono. À noite, es­ses sinais são substituídos por ou­tros que nos estimulam a dormir. Nossas células cerebrais também funcionam assim: elas ficam cada vez mais excitadas em resposta a estímulos durante a vigília e essa excitabilidade se dissipa quando dormimos. Mas em pessoas com depressão e transtorno bipolar, essas flutuações aparecem amor­tecidas ou ausentes.

A depressão também está asso­ciada a ritmos diários alterados de secreção hormonal e à tempera­tura corporal. Quanto mais grave a doença, maior o grau de ruptu­ra com a normalidade. Como os si­nais de sono, esses ritmos também são conduzidos pelo sistema cir­cadiano do corpo, que por sua vez é conduzido por um conjunto de proteínas que interagem, codifica­das por genes que são expressos em um padrão rítmico ao longo do dia. Elas controlam centenas de proces­sos celulares diferentes, que as per­mitem permanecer sincronizadas e possam ligar e desligar.

Um relógio circadiano está em todas as células do nosso corpo, e estes mini-reloginhos são coor­denados por uma área do cérebro chamada núcleo supraquiasmáti­co, que responde à luz. “Quando as pessoas estão seriamente depri­midas, seus ritmos circadianos ten­dem a ser muito contínuos. Eles não recebem a resposta usual de melatonina aumentando a noite e os níveis de cortisol são consistente­mente altos em vez de cair à noite”, explica Steinn Steingrimsson, psi­quiatra do Hospital Universitário Sahlgrenska em Gotemburgo, na Suécia, que está atualmente execu­tando um teste de terapia de vigília.

A recuperação da depressão está associada a uma normalização des­ses ciclos. “Eu acho que a depres­são pode ser uma das consequên­cias desse achatamento básico de ritmos circadianos e homeostase no cérebro”, diz Benedetti. “Quan­do privamos pessoas deprimidas de dormir, restauramos esse pro­cesso cíclico”, acredita. A privação do sono faz outras coisas para o cé­rebro deprimido, como provocar mudanças no equilíbrio de neuro­transmissores em áreas que ajudam a regular o humor e restaurar a ativi­dade normal em áreas de processa­mento emocional do cérebro, forta­lecendo conexões entre eles.

SEM REMÉDIOS

Uma das maiores vantagens des­ta abordagem é o fato de não utilizar drogas que, no caso desta doença especificamente, possuem efeitos colaterais alarmantes, como o au­mento nos pensamentos suicidas. O problema é que isso também é uma grande desvantagem do pon­to de vista do investimento.

Se a privação do sono faz com que o sistema se reinicie, o lítio e a terapia de luz parecem ajudar a manter a melhora. O lítio tem sido usado como um estabilizador de humor durante anos sem que ninguém realmente compreen­da como ele funciona. Só o que sabemos é que ele aumenta a ex­pressão de uma proteína, chama­da Per2, que impulsiona o relógio molecular nas células.

Já a luz brilhante é conhecida por alterar os ritmos do núcleo su­praquiasmático, além de aumentar a atividade em áreas de processa­mento emocional do cérebro de for­ma mais direta. A Associação Ame­ricana de Psiquiatria afirma que a terapia de luz é tão eficaz quanto a maioria dos antidepressivos no tra­tamento da depressão não sazonal.

Mas apesar de seus resultados promissores contra o transtorno bipolar, a terapia de vigília não é muito divulgada ou incentivada justamente por não ter apoio da in­dústria farmacêutica. “Você pode ser cínico e dizer que é porque você não pode patenteá-la”, brinca Da­vid Veale, consultor psiquiatra na South London e Maudsley NHS Foundation Trust.

Benedetti nunca recebeu finan­ciamento farmacêutico para reali­zar seus estudos de cronometria. O pesquisador dependia, até re­centemente, do financiamento do governo, que geralmente é escas­so. Sua pesquisa atual está sendo financiada pela União Europeia. “Se eu tivesse seguido a rota con­vencional de aceitar o dinheiro da indústria para executar ensaios de drogas com meus pacientes, prova­velmente não moraria num apar­tamento de dois quartos e nem di­rigiria um Honda Civic de 1998”, ironiza o pesquisador.

O viés voltado para soluções far­macêuticas, diz a matéria, mante­ve a cronoterapia abaixo do radar para muitos psiquiatras. “Muitas pessoas simplesmente não sabem sobre isso”, diz Veale. Também é di­fícil encontrar um placebo adequa­do para privação de sono ou expo­sição a luz brilhante, o que significa que ensaios randomizados e con­trolados com placebo de cronote­rapia não foram realizados.

Por isso, há um certo ceticismo sobre o quão bem esta abordagem realmente funciona. “Embora haja um interesse crescente, não pen­so que muitos tratamentos basea­dos nesta abordagem sejam roti­neiramente utilizados, as evidências precisam ser melhores e existem al­gumas dificuldades práticas na im­plementação de coisas como a pri­vação do sono”, diz John Geddes, professor de psiquiatria epidemio­lógica na Universidade de Oxford.

Mesmo assim, Geddes diz que o interesse nos processos que sus­tentam a cronoterapia está come­çando a se espalhar. “Novas ideias sobre a biologia do sono e os siste­mas circadianos agora estão forne­cendo alvos promissores para o de­senvolvimento do tratamento. Isso vai além dos produtos farmacêuti­cos, visar o sono com tratamentos psicológicos também pode ajudar ou até mesmo evitar transtornos mentais”, conclui o especialista.

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