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COTIDIANO

A saúde pede socorro hospitalizada

  •  Rede Itego já tem unidades paralisadas e hospitais estão na penúria com falta de medicamentos, insumos básicos e materiais de limpeza. Usuários relatam ter de trazer até esparadrapo de casa. Organizações Sociais suspendem pagamento de tributos e Ministério Público investiga desmandos

O modelo de gestão com­partilhada na saúde e em educação tecnológica em Goiás está entrando em colapso por causa da falta de comprome­timento do Estado em repassar os recursos para as Organizações Sociais que fazem essa gestão. So­mente na saúde a dívida já ultra­passa R$ 280 milhões e tende a au­mentar com a chegada do final do governo e encerramento do ano.

O governador de Goiás, José Eliton (PSDB) anunciou recente­mente que o Estado teria dificul­dades para fazer os repasses para esses dois segmentos, mas que se­ria encontrada uma solução. “Não poderíamos jamais prever que a situação chegaria a um ponto críti­co como esse porque esse mesmo governo há um mês pedia votos para a população e dizia que ha­via sido capaz de resolver os pro­blemas de Goiás, por isso podia continuar no comando da admi­nistração”. O lamento é do diretor de uma OS que faz a gestão de um grande hospital de Goiânia, mas pede para não ser identificado.

As dívidas da Secretaria Estadual de Saúde para com as Organizações Sociais já ultrapassou a astronômi­ca cifra de R$ 283 milhões e as OSs que fazem a gestão da Rede Itego (Institutos Tecnológicos de Goiás), responsáveis pela educação tecno­lógica, já amargam mais de R$ 23 milhões em repasses não honrados pelo governo e muitas unidades es­tão com as portas fechadas, profes­sores em greve e alunos sem aulas.

Para completar o panorama ne­buloso da situação, o Ministério Público abriu investigações varia­das para apurar denúncias de má gestão dos recursos e até suspeitas de desvios na aplicação das verbas que deveriam custear pagamento de médicos e pessoal de apoio, ali­mentação de pacientes, medica­mentos, manutenção de equipa­mentos, pagamentos de tributos para terem Certidão Negativa de Débitos e até os direitos trabalhis­tas dessas unidades. Como desgra­ça pouca é bobagem há hospitais em que falta até papel higiênico, como relatam servidores, pacien­tes e acompanhantes.

DESISTÊNCIA

O Hospital de Urgências de Goiânia (HUGO) é administrado pela OS Gerir, desde que o contra­to de gestão foi idealizado e implan­tado pelo governo de Goiás. Citado como modelo de sucesso por vá­rios anos e objeto de estudo por ad­ministrações de outros estados ele agora é tido como deficitário e com vários meses em atraso, acumulan­do um déficit até setembro de R$ 35,5 milhões, a unidade agoniza com falta de medicamentos, ma­terial de limpeza, comida e redu­ção do número de médicos e enfer­meiros que atendem os pacientes. O modelo de “hospital porta aber­ta” chegou ao ponto de estrangula­mento e a direção da OS Gerir deci­diu entregar os pontos.

Um dos segredos mais bem guardados nos últimos dias dá conta de uma discussão violen­tíssima entre o diretor da Gerir e o governador José Eliton sobre uma glosa (desconto) que o Estado vai fazer nas faturas apresentadas pelo Hugo e que aumentaria exponen­cialmente o prejuízo acumulado. O pega aconteceu no sábado que antecedeu o domingo das eleições e ocorreu no Palácio das Esmeral­das. O governador anunciou que iria de fato glosar as contas e que a OS deveria arcar com o prejuízo. Foi o bastante para o diretor explo­dir e jogar tudo para o ar. No pri­meiro dia útil após o bate-boca, a segunda-feira, 8, a Gerir protoco­lou na Secretaria Estadual de Saú­de uma notificação informando que iria suspender a gestão den­tro dos 30 dias que a lei determi­na e que o Estado deveria provi­denciar outra Organização Social para assumir o Hugo.

Enquanto isso médicos, funcio­nários, pacientes e familiares so­frem os efeitos nefastos do desca­so de quem está lutando pela vida em um leito e corredor de hospital. O Ministério do Trabalho decretou uma intervenção no hospital por falta de condições mínimas para os obreiros da unidade e o Ministério Público prossegue com a investiga­ção sobre a aplicação dos recursos.

“Pacientes precisam tomar me­dicamentos como antibióticos mais fortes do que o necessário por falta de outros recomendados para seus casos. Falta até material para aplicar injeções e esparadrapo está sendo regrado”, relata um médico da unidade. Todos aceitam falar com o compromisso de não serem identificados sob hipótese alguma. Pacientes também reclamam que estão sofrendo os efeitos desgra­çados do desmando administra­tivo. Na recepção social do Hugo, onde familiares aguardam notícias e acompanhantes se revezam para ajudar no cuidado com os doentes os relatos são doloridos e refletem a crueza da realidade que vivem dentro do nosocômio.

“Até a comida para os acom­panhantes está sendo regrada e material de limpeza foi reduzido à metade, como nos contam os funcionários de serviços gerais”, narra a mãe de um rapaz interna­do na ala de ortopedia. Ela ouviu de um médico que até mesmo o cuidado para evitar infecção hos­pitalar está sendo negligenciado por falta de álcool gel e sabonete líquido para assepsia das mãos. “É um caos total”, lamenta. Além do Hugo, a OS Gerir faz a ges­tão compartilhada também do Hospital de Urgências de Trin­dade (Hutrin), que acumula dé­bitos nos repasses da Secretaria Estadual de Saúde da ordem de R$ 2,363 milhões.

DESUMANIZAÇÃO

O Hospital Materno Infantil é outra unidade hospitalar da rede estadual de saúde gerida por uma Organização de Saúde. Curiosa­mente a OS é o Instituto de Gestão e Humanização (IGH), e além do Materno a OS faz a gestão da Ma­ternidade Nossa Senhora de Lour­des e também do Hospital de Ur­gências de Aparecida de Goiânia (Huapa). Somente o HMI acumula um déficit nos repasses do Estado que ultrapassa R$ 24,950 milhões, enquanto que somado ao rombo na falta de recebimentos das ou­tras unidades o papagaio chega a R$ 33,856 milhões. Uma mon­tanha de dinheiro que o Estado deveria repassar para não deixar pacientes vivendo à míngua nos leitos e profissionais estressados pela falta de pagamento, além de insumos básicos serem negados aos pacientes e acompanhantes.

Os relatos de desmandos pipo­cam na porta do HMI, sem que seja preciso procurar muito. São pa­cientes que aguardam uma aten­ção humanizada, um medica­mento que lhe mitigue a dor ou que garanta um pouco de alento para o filho recém-nascido ou mes­mo um pouco de conforto na en­fermaria em que esteja internado ou acompanhando um paciente.

Madalena Paiva Silva é uma jo­vem de 18 anos, que veio de Rio Verde com a mãe para fazer acom­panhamento de sua gravidez de risco. Aos oito meses de gestação, ela viu seu líquido aminiótico se­car após uma discussão com o ma­rido. “Me mandaram para cá para fazer o pré-natal e eu fiquei inter­nada na última semana. Me deram alta e agora preciso voltar aqui duas vezes na semana para fazer acom­panhamento, mas não consigo mé­dico para olhar os exames nem me dão qualquer satisfação sobre o que eu preciso fazer”, lamenta.

A gravidez de risco dela é cor­roborada pelos exames comple­mentares, mas ela não consegue qualquer resposta convincente. Durante o tempo que ficou inter­nada, ela lembra que foi de gran­de sofrimento.

“Lá dentro está uma imundí­cie só, com muita sujeira nos ba­nheiros, quartos e corredores e não há nem ventilação na enfer­maria, e nesse tempo de calor fica insuportável”. Desde que recebeu alta ela vem constantemente, mas quando chega lá dentro a justifi­cativa é que não há médico para olhar seus exames e que ela deve retornar para casa e tentar na pró­xima semana. Madalena conta que viu outros casos de negligên­cia, como pacientes que chega­vam para o parto e enquanto não pariam os enfermeiros apenas fa­ziam o toque para aferir a dilata­ção e as deixavam ao Deus dará, sem assistência. “Vi uma menina que ficou 12 horas em trabalho de parto e quase morreu”.

Os relatos se acumulam, como o de Cristiane Alves Silva, cuja fi­lha está internada após dar à luz em um parto cesáreo. Ela lamen­ta que o quarto está um calor infer­nal e não há sequer um ventilador para aplacar a sensação térmica de pacientes e bebês. Mas, o pior ain­da seria relatado. “Não há uma ja­nela que abra direito, só tem cama velha e escadas caindo aos peda­ços. Mais nada. No banheiro não tem papel higiênico, fica sempre uma nojeira e não há nem mesmo uma cadeira de banho para as mu­lheres e as enfermeiras e médicos são uma grosseria só com a gen­te”, diz a mulher contendo o choro.

Tatiane Lima, 35 anos, deu à luz uma filha que apresentou proble­mas após o nascimento e precisou ser internada na UTI pediátrica. Ela faz coro aos outros relatos que descrevem a infraestrutura sofrível da unidade, mas acrescenta outra situação que não se concebe em um hospital público como esse, de grande porte. “Eles pedem para a gente trazer até esparadrapo de casa para prender soro e equipos nas crianças porque aí não tem. Nos banheiros não tem nem pa­pel higiênico e tudo está caindo aos pedaços, além da higienização que é feita às vezes só uma vez ao dia. O tempo todo é de mães cho­rando para um atendimento, uma palavra de um médico que nos ajude e não temos nada”.

A desídia do atendimento foi o ponto crucial no parto da cunha­da de Roberta Dantas Pires. A parturiente tem um histórico de diabetes alta e veio de Itumbiara para dar à luz. Roberta conta que a cunhada recebeu alimentação errada, que não poderia ser mi­nistrada a um diabético que ne­cessita de dieta especial e isso ace­lerou o trabalho de parto. “Minha cunhada ficou das seis da tarde de um dia até as cinco da manhã de outro em trabalho de parto e quando chegou a hora de parir, ela já não tinha mais forças por causa da hipoglicemia. O bebê foi prematuro e teve uma falta de oxi­genação no cérebro que fez com que ela precisasse de ir para a UTI. A mãe está na UTI também, mas seu estado é estável, mas a crian­ça está grave”, lamenta.

A reportagem ouviu uma médi­ca que aguardava um táxi na porta. Ela só aceitou falar com a condi­ção de anonimato, mas seu relato é comovente e comprova a situa­ção crítica que vive a saúde pú­blica. “Nós médicos somos mui­to cobrados, mais ninguém vê que estamos além dos nossos limites. Temos salários arrochados, con­dições mínimas de trabalho re­duzidas ainda mais e turnos de trabalho que superam as justas jornadas. Estamos fazendo um es­forço sobre-humano para dar con­ta do alto volume que recai sobre nossas costas”, frisa a profissional. Ela se desculpa por não falar mais e explica que se for identificada so­frerá sanções severas.

INVESTIGAÇÃO

O Ministério Público acompa­nha de perto a situação e traça um diagnóstico do que está aconte­cendo. A promotora de Justiça Vil­lis Marra, da Promotoria de Defe­sa do Patrimônio Público, vistoriou unidades de saúde e já tem um panorama da complexidade dos casos, além de saber que aconte­ceram descuidos administrativos graves. Como é o caso do HMI e da Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, geridas pelo IGH. A desí­dia para com a estrutura precária, a falta de insumos e contas que não batem estão na mira do MP.

No Hospital de Doenças Tro­picais, o HDT, gerido pelo Institu­to Sócrates Guanaes, de Salvador, a situação é igualmente caótica, segundo o MP. A promotora Villis Marra tem relatórios que apontam pagamento de salários dos servi­dores em atraso, falta de material, de roupa de cama, roupa para pa­cientes e funcionários e até de ali­mentação para pacientes e funcio­nários. “A comida é horrível, com uma aparência horrível e fedida, como atestam relatórios de ins­peção”. A diretora geral do HDT, Aline Oliveira, oficiou à promoto­ra que realmente haviam serviços deficitários e que a ausência de pa­gamentos para a empresa Sanoli, que fornece alimentação, se deu em virtude “da insuficiência de re­cursos para quitação dos títulos”.

EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA PARADA

A situação é de preocupação também para as Organizações So­ciais que fazem a gestão dos Institu­tos Tecnológicos de Goiás, os Itegos, anunciados como um modelo efi­ciente e eficaz administrativo pelo governo do Estado. Estranguladas pela falta de repasse de recursos às unidades gestoras não puderam fa­zer outra coisa senão reduzir signi­ficativamente as atividades. A OS Fundação Antares de Ensino e Pes­quisa (Faespe) faz a gestão de uni­dades de excelência em municípios do interior, como o Itego Governa­dor Otávio Lage, em Goianésia.

O superintendente de Planeja­mento da Faespe, Alexandre Morel­li, ressalta que a dificuldade finan­ceira fez com que fossem reduzidos uma série de serviços em primeiro plano e se persistir a falta de repas­ses teme pela suspensão de uma série de atividades vinculadas ao contrato de gestão. “Pretendemos manter o padrão de excelência nos cursos tecnológicos que ministra­mos, mas temos poucas reservas para prosseguir. Se não for regula­rizado o cumprimento dos repas­ses será uma situação crítica para administrarmos”, lamenta.

A OS Instituto Reger, que faz a gestão de Itegos e Cotecs em Cata­lão e Anápolis, já está no quinto mês com os repasses atrasados. Profes­sores e servidores em Catalão fize­ram greve e protestaram contra o atraso. Só não prosseguiram por­que a direção mostrou transparên­cia e diálogo com os servidores. Sô­nia Santos, a presidente, lamenta que a situação tenha chegado a esse ponto. “Fazer a gestão de uma rede de ensino tecnológico demanda profissionais qualificados, que pre­cisam remuneração condizente e acompanhamento constante, por­que lidamos com a inovação tecno­lógica. Sem os recursos que foram pactuados no contrato não é pos­sível trabalhar de forma satisfató­ria”, comenta. Reger e as outras OSs apresentaram números de excelên­cia no cumprimento das metas es­tabelecidas nos contratos. “Nosso serviço está sendo feito com total zelo, precisamos apenas dos recur­sos para avançarmos mais”.

O Centro de Educação Conti­nuada (Cegecon) é a OS que faz a gestão de unidades de ensino tecnológico de excelência, como o magistral Instituto de Artes Ba­sileu França, um colosso de mais de 5.000 alunos nas mais varia­das vertentes, como orquestra, coral, artes cênicas, artes visuais e até arte circense. Sem verbas re­passadas pelo estado o trabalho de professores e servidores admi­nistrativos fica sendo quase que voluntário. O diretor adminis­trativo-financeiro do Cegecon, Mauro Reis, frisa que o descom­passo econômico provocado pela falta de repasses compromete toda a excelência do serviço bus­cado. “Precisamos de regularida­de nos repasses e garantia de que vamos pagar servidores, forne­cedores, prestadores de serviço e os tributos para mantermos a linha sempre crescente na edu­cação que ministramos”.

Outra OS que cumpriu metas na gestão de Itegos de excelência, como o Luiz Rassi, em Aparecida de Goiânia e Sebastião Siqueira, que dá cursos gratuitos de técni­co em enfermagem e segurança no trabalho, é o Centro de Solu­ções em Tecnologia e Educação (Centeduc). O presidente, Fernan­do Sobral, é incisivo na dificulda­de provocada pela falta de repas­ses. “Simplesmente não podemos funcionar sem que seja cumpri­da essa parte do Estado. Mante­mos o serviço de alto nível que nos credenciou junto ao Estado e es­peramos apenas o cumprimento do que foi pactuado para darmos prosseguimento”, finaliza.

Até a comida para os acompanhantes está sendo regrada e material de limpeza foi reduzido à metade, como nos contam os funcionários de serviços gerais” Relato de uma mãe de paciente
As dívidas da Secretaria Estadual de Saúde para com as Organizações Sociais já ultrapassou a astronômica cifra de R$ 283 milhões” Lá dentro está uma imundície só, com muita sujeira nos banheiros, quartos e corredores e não há nem ventilação na enfermaria, e nesse tempo de calor fica insuportável” Madalena Paiva, paciente do Materno Infantil Simplesmente não podemos funcionar sem que seja cumprida essa parte do Estado” Prof. Fernando Sobral, diretor presidente do Centeduc

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