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COTIDIANO

Resistência comunitária

Aqui que é a Praça do Crimeia onde vai ter um festival? O Festival Juriti. É que nós vamos participar. Nós somos a Pó de Ser, tá ligado? Inventamos este nome agora, pode ser: Pó de Ser, pô. Sacou?”, diz o músico Diego Mascate. Corria o ano de 2009, e Diego era um dos participantes do Juriti. “Fiz esta música meio de repente, com o Kleuber Garces, da Campininha, grande cantor e compositor. Por isso ela se chama “De Repente, né, tá ligado? É assim, ó”, apresenta-se, cantando e dedilhando o violão.

Criado em 1993, foi com o Juriti que os moradores do Crimeia Leste passaram a celebrar a convivência comunitária após o fim do futebol de várzea, extinto por causa de interesses de um vereador da região. Depois dessa edição, o evento voltou a ser realizado apenas em 2009, já com apoio das leis de incentivo: na ocasião, concorreram artistas, crianças da favela Emílio Póvoa e integrantes de projeto idealizado pelo Padre Sérgio que, dirigidos pelo ator Semio Carlos, venceram a categoria Poesia Encenada.

As lembranças, aliadas a necessidade de entregar um trabalho para concluir o curso superior de Produção Cênica no Instituto Tecnológico (Itego) em artes Basileu França, levaram o jornalista, ator e dramaturgo Carlos Pereira a escrever a peça teatral “O Voo do Juriti” – que estreia na sexta (25), às 20h, no canal pelo Youtube TV Crimeia. Num primeiro momento pensado para ser encenado presencialmente, o texto acabou sendo adaptado para o ambiente virtual e, com isso, virou um trabalho cuja linguagem é híbrida.

“Para mim, participar da peça, me proporcionou ter acesso a uma solidariedade, a uma cultura que unem as pessoas, transformam suas vidas”, diz o ator Marcos Maria Branquinho. “Foi muito importante trabalhar nesse projeto, porque eu dei uma carta de aceite para o Carlos em 2019, nem esperava nada, mas a gente pôde trabalhar. A gente precisa continuar resistindo: uma coisa é o audiovisual, outra é o teatro.”

Os encontros presenciais, garante o diretor cênico Luis Claudio, permitiu que os atores tirassem o melhor de suas presenças físicas no teatro. “Dirigir esse espetáculo foi, além de muito prazeroso, por continuar a parceria que já temos de projetos juntos com a família Pereira, um exemplo de inspiração e produção cultural, uma oportunidade para aprofundar o conhecimento da história do bairro, com os moradores antigos, para a construção cênica do texto escrito pelo Carlos Pereira”, afirma Luiz.

Durante a produção da peça, o iluminador de “O Voo do Juriti”, Delgado Filho, foi internado por causa de complicações provocadas pela covid-19. “Ele passou por um processo muito complicado, e o Semio, companheiro dele, principal ator da peça, teve muita dificuldade. Mas a contribuição dele foi fundamental para o espetáculo, a luz que ele trouxe, o Delgado iluminando lá da UTI. Foi um processo muito difícil, desde quando eu liguei para eles e estavam com coronavírus”, recorda-se Pereira. Para Luis, o drama de ter um companheiro sofrendo complicações provocadas pelo coronavírus foi um capricho dos deuses. “Vimos que tínhamos que ter, além da força criativa, força de cura para os nossos companheiros diretamente atingidos e, principalmente, a missão cumprida do espetáculo concluído e nosso companheiro recuperado em casa.” Já Maria diz: “eu mesmo estava com medo da doença. Estou tentando me preservar, mas ao mesmo tempo estou ficando louco.”

HISTÓRIA
Nas décadas de 1970 e 1980, o Crimeia Leste contou um campo de futebol – o terrão – que revelou craques que chegaram a vestir a camisa da seleção brasileira e foram jogar na Europa. Os jogos eram uma atração, com registros de partidas que tiveram público de 2 mil pessoas em jogos decisivos. Mas, com a urbanização e a especulação imobiliária, ainda que contasse com resistência dos moradores, o campo chegou ao fim: no lugar dele, criou-se uma praça vazia, praticamente desprovida de emoções.

Após a realização da primeira edição, em 1993, as dificuldades se mostraram presentes, e fazer um evento de grande porte sem apoio das leis de incentivo à cultura fez com que o Juriti ficasse adormecido por 16 anos. A partir de seu retorno, em 2009, o festival cresceu e, neste ano, chega a sétima edição com o status de ter revelado nomes como Carne Doce, Chá de Gyn, Mundhumano, The Galo Power, Erotori, Terra Cabula, além de compositores, poetas, atores e artistas cênicos carimbados no meio cultural.

Embora competitivo, o Juriti se tornou conhecido pela confraternização dos artistas de setores culturais de Goiás e Distrito Federal, a partir da qual buscava-se trazer para Goiânia atrações nacionais, como os cantores Jorge Mautner, Walter Franco e Badi Assad. E, por conta do clima aconchegante e carinhoso, o evento chegou a ser elogiado pelo poeta marginal Nicholas Behr, expoente da literatura nos anos 1970 no DF.

“A história da comunidade já vem sendo contada há muito tempo, por mim, pelas pessoas da minha família, por um grupo de pessoas aqui da comunidade: a gente tinha a Crimeia Resistência Comunitária, a parceira com o padre Sérgio, com o centro social Cidadania Plena, pela criação do Juriti, feita pelo meu irmão Ricardo”, afirma o dramaturgo e jornalista Carlos Pereira, que é morador da região desde 1969.

Com texto que reúne poemas de Dayse Kenya, Regina Magnabosco e Léo Pereira, o espetáculo “O Voo do Juriti” mostra por que é preciso resistir à especulação imobiliária. Sem esquecer, claro, da força cênica de Marcos Maria Branquinho quando interpreta alguns desses versos: “eu lembrei muito das minhas leituras de Zygmunt Bauman, da sociedade líquida, então eu exigi que a gente gravasse numa água.” Definitivamente, o Festival Juriti – como diz o cantor, compositor e escritor Jorge Mautner, que esteve no evento em 2014, fez show na praça do Crimeia e foi júri na final – é “irresvalável”. Assistam ao “O Voo do Juriti” e confirmem. (Marcus Vinícius Beck)

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