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Entre o bêbado e o operário

Xico Sá, 59, ri e diz que o ideal é o escritor iniciar o texto – seja um romance, uma crônica, um conto e, por que não?, uma reportagem – bêbado e lapidar as palavras na sobriedade, como se o andaime da revisão, aquela hora em que você ajeita a sinfonia, o ritmo e as frases de efeito, que não obrigatoriamente estarão bem pontudas ali, fosse sendo ajustado no suor do labor. “Nem precisa ir no Bukowski. Reinaldo Moraes tem isso que eu falei, mas depois ele trabalha como um desgraçado. Tem o bêbado e o operário. É o que dá uma grande obra”, afirma Xico, por telefone, ao Diário da Manhã.

Francisco Reginaldo de Sá Menezes, cearense do Crato, formado em jornalismo pela UFPE, repórter investigativo que encontrou o paradeiro de PC Farias no Collorgate, cronista, romancista, comentarista de futebol, devoto a Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos e Antonio Maria, existencialista fã de Jean-Paul Sartre, amigo de Doutor Sócrates, boêmio, santista… Xico nunca negou que exibe uma extensa ficha corrida. É o que ele compartilhará nesta terça-feira, 26, a partir das 19h30, no Teatro Goiânia, durante o terceiro bate-papo do ciclo de palestras Diálogos Contemporâneos.

Escriba ‘mal diagramado’, como ele mesmo já chegou a se definir em crônica publicada na Folha de S. Paulo, Xico analisará como as mídias tradicionais e os novos meios de comunicação transformaram a maneira na qual a notícia é veiculada e consumida. Seu currículo, inclusive, lhe legitima: passou pelas redações dos principais jornais brasileiros e se tornou figura cativa também na televisão ao participar de programas no Sportv e GNT, exibindo um bom-humor com tiradas que trouxeram o cronista à tela.

“Não podemos generalizar e dizer que é o tempo todo que a imprensa brasileira esquenta dólar, mas a dita empresarial, a chamada grande mídia, que assim a definimos ao longo do tempo, majoritariamente controlada por poucas famílias, é muito hereditária”, explica. “Isso vale e fica mais evidente quando se fala dos grandes meios de Rio e São Paulo, mas em todos os estados temos duas ou três famílias que controlam a mídia e essas famílias têm interesses, do jogo das grandes empresas, o que faz dela em muitas ocasiões mais uma assessoria de imprensa do capital.”

Xico conhece – e bem – as regras do jogo. Durante o Collorgate, por exemplo, ficou próximo de PC Farias, homem que abriu o bico e abalou a república, quase a implodindo. Como conseguiu ficar próximo dele? Segundo o escriba, por não ser o tipo de jornalista sério, cujas fontes são personalidades ligadas ao tabuleiro da política. Quem lhe dava informações, ou melhor, onde apostou suas fichas seguindo o faro de repórter no paradeiro de Farias eram os porteiros, garçons, prostíbulos, todo mundo em tese é chegado a molhar a palavra nas bodegas, por que seria diferente com PC?

Para Xico, esse tipo de jornalismo hoje se tornou inviável, difícil. “Acabamos falando muito dessa grande mídia mais empresarial, mas você tem, como se fossem pequenos jornais, pequenas redes, que vem com esses assuntos que você não vai ver com facilidade na grande imprensa: divulgação de pautas de direitos humanos, indígenas, movimento negro.” Foram as pequenas mídias alternativas, diz, que acabaram criando uma opção de comunicar que nunca houve no Brasil: “essa rede é uma salvação. É o lugar desses assuntos que não serão acolhidos com facilidade na grande mídia.”

Mas, Xico, e a pós-verdade? “A mesma internet vem com essa usina de fake news. Ajuda o bolsonarismo com essa indústria do ódio”, problematiza. Sim, existe um lado perverso e é preciso ser sábio e ligado para jogar esse jogo de comunicação. “Podemos combater no varejo, desmentindo, mostrando fatos que destroem. É quase uma política de combate permanente. Não tem uma receita”, aponta Xico, defensor do uso de recursos da linguagem literária como componente sedutor para o texto jornalístico. “É tão pouco usado, mas é sempre a grande saída, e está longe de ser uma novidade.”

Nos Estados Unidos, jornalistas como Gay Talese, Tom Wolfe, Joseph Mitchell e Hunter S. Thompson mudaram as regras textuais na imprensa. “Esse atrativo da literatura é muito pouco usado. É uma burrice. É um chamado para a leitura. Você fazer um texto mais atrativo, com diálogos, com armas da velha e boa literatura, oferecerá ao leitor um atrativo, um presente, que no geral os jornais não se preocupam, pois seus textos são áridos e objetivos”, atesta o autor de “Os Machões Não Dançam” (2015), “A Pátria em Sandálias da Humildade” (2016) e “Big Jato” (2012).

Crônica
Cronista que empilha referências oswaldianas numa velocidade metafórica, gracilianas na concisão das frases e rodrigueanas na irreverência do sabor do amor e desamor, Xico Sá explica que a crônica se supunha morta nos jornais na década de 1990, um pouco antes de a internet se tornar parte de nossas vidas. Mas com o novo meio de comunicação, por ser um texto de natureza enxuta, lírica, afetuosa, ou uma conversa de dois amigos entre uma cerveja e outra e um café e outro, o gênero renasceu: “hoje temos uma boa fartura de cronistas, embora eu use uma referência mais antiga.”

Quem são os mestres a que recorre? Lima Barreto e João do Rio, além – claro – de Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos e Antonio Maria. “Podem ser aplicados a qualquer assunto de hoje, pra contar essa nossa história, em relação aos costumes, à cultura, à política, às artes. Dá pra aplicar a crônica com relativo sucesso a qualquer hora. É quase como se puxasse uma cadeira no bar e bebesse um trago, uma cerveja, ou tomasse um café, pra não ficar só em quem bebe, com o leitor. Quando vou escrever uma crônica me sinto sempre com essa imagem na cabeça”, revela.

Desprovida do compromisso do historiador, ou do grande sociólogo, a crônica se consolida nos pequenos fatos, na mudança de costume, deixando seu testemunho da história. “Não está fazendo o grande livro do registro histórico, mas você está contando por outras vias o que se passa. Por exemplo, durante a pandemia, você vai ter todas as polêmicas e tudo o que aconteceu através dos cronistas. Tá lá o cara falando dos teimosos que não usam máscara, outro falando da estranheza em tirá-la para tomar uma cerveja”, conta o cronista, citando a dificuldade que teve ao se trancar em casa e esbarrar na falta de assunto, já que sua matéria-prima está no cotidiano.

Xico, autor do romance “Big Jato” que foi adaptado para o cinema pelo cineasta Cláudio Assis em 2014, diz que terminou uma obra que deve ser publicada em março ou abril do ano que vem. Em certo sentido, em matéria de livro, é o que Belchior cantou na música “Divina Comédia” - “mais angustiado que um goleiro na hora do gol.” “Tinha uma obsessão pela figura solitária do goleiro: é o único que pega a bola com a mão. É o cara que não pode falhar, tem essa missão”, reflete o escritor.

De fato, os dez podem, de certa forma, errar e não será fatal, mas o arqueiro jamais: carrega toda essa obsessão de ser eficiente o tempo todo, estar atento, defender o time. Xico transporta isso para vida, a ideia de sermos 24 horas bons. “Nesse sentido, é um romance existencialista. Em 90 minutos, o que se passa na cabeça do goleiro? Eu via muito futebol na infância e ficava pensando o que o goleiro pensava, como ele estava vivendo esse momento de uma certa solidão, embaixo da trave”, antecipa.

Para o ciclo de palestras Diálogos Contemporâneos, nesta terça-feira, 26, no Teatro Goiânia, Xico Sá dá a letra: “vai ser como se estivéssemos no botequim conversando.”

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