Home / Cultura

CULTURA

Nada me faltará - A inventividade de Lourenço Mutarelli

 Capa do livro publicado pela Companhia das Letras e ilustrado pelo próprio autor

Ian Caetano, Especial para Diário da Manhã

Então por que você está falando do Tarzan? Porque era uma série, é isso?

Não. Eu falei do Tarzan porque foi quando eu descobri isso. Foi quando  descobri que aquilo era dublado. Mataram um índio no episódio e eu chorei.

Saquei.

Para me consolar, eu era muito pequeno, meu pai explicou que aquilo não era verdade. Ele falou que eram atores, e fiquei desapontado com isso. Daí ele disse que o Tarzan era um ator americano e que a voz que a gente ouvia nem era a sua voz verdadeira.

Entendi.

Acho que, percebendo o meu desapontamento, ele deixou bem claro que o grito era o grito do ator de verdade, mas todo o resto, tudo que ele falava, era dublado.

Era o Jhonny Weissmuller. O grito dele era legendário.

...

E nós só podíamos ouvir sua verdadeira voz quando ele gritava: “Mutarelli, nada me faltará!”

FICHA TÉCNICA

Título: Nada me faltará

Autor: Lourenço Mutarelli (brasileiro)

Data da 1ª publicação: 2010

Mutarelli é expressão do que podemos chamar de um artista autoral. Na busca pela publicação de suas histórias começou sua carreira como quadrinista (escrevendo HQs autorais geniais: como Transubstanciação e a Trilogia do Detetive Diomedes e recentemente revisitou o formato, de certa forma, no livro ilustrado Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, além de diversas outras obras neste formato).

Em um país onde o quadrinho autoral é tão pouco difundido – principalmente aquele que foge do estilo humorístico, como é o caso – o autor, em um feriado de carnaval passado em casa, começava a escrever mais um roteiro para uma história desenhada. Olhando o roteiro quase finalizado, resolve não desenhar nada. Depois de algumas alterações tinha em mãos, em um processo de menos de 3 dias, o manuscrito de sua primeira obra de literatura, O Cheiro do Ralo. Obra que alguns anos depois seria vertida para o cinema pelo realizador Heitor Dália (adaptação responsável pela maior exposição de Mutarelli). Já neste filme atuara como coadjuvante fazendo um papel que sequer existia no livro, mas que mostrou também sua capacidade de atuação. Mutarelli também escreveu peças para o teatro, atuou em outras duas adaptações de livros seus, escreveu e dirigiu uma websérie, realizou a composição de uma exposição em homenagem a Jards Macalé... é, escusado dizê-lo, um autor.

Falar de suas obras mais destacadas seria um esforço demasiado repetitivo, uma vez que já são aclamadas pela crítica e ele já é considerado um grande nome da literatura nacional recente, ainda que seja, em termos de venda, um autor ainda pouco difundido. Falarei de uma obra dele de menos destaque, embora tão original e bem escrita como as outras: Nada me faltará.

Um homem volta ao seu antigo aposento um ano depois de haver desaparecido. O aposento já não é mais dele, ele não sabe por quê. Para o desaparecido, não se havia passado um ano, era como se ele tivesse saído no dia anterior e tivesse voltado hoje. A questão toda seria simples – em termos gerais – se fosse só isso, o problema é que o homem em questão desapareceu juntamente com a mulher e a filha, mas ressurgiu sem elas.

Este é o argumento inicial para contar a história de Paulo. Um diferencial interessante da história é que ela é totalmente contada em diálogos, não há uma única linha do narrador. E há um encaixe celebrável entre a técnica e a história, pois tudo vai sendo contado e carregado aqui ou alhures consoante as angústias e as desconfianças dos que estão ao redor de Paulo: sua mãe, um casal de amigos que ele tem, seu psicólogo e a polícia, que quer saber onde estão os membros restantes da família. A mãe está desesperada, pois acha que o filho não tem se esforçado o bastante para lembrar o que aconteceu. Paulo insiste estar bem, apesar do esquecimento, mas seus amigos tratam-no como um doente depressivo em estado terminal. Seu psicólogo é, de certa forma, mais interessado em falar dos problemas que Paulo tem do que ouvir o que este tem a dizer. E a polícia... bem, a polícia é a polícia.

Um destaque, como em todos os outros livros da obra do autor, é certamente para os diálogos, que são sempre dados às frases de impacto, mas conseguindo escapar do tom piegas que estas, algumas vezes, vêm a ter. Um grande exemplo nacional do legado estético do realismo fantástico, com influências como Kafka, Dostoievski, Vonnegut e bem curto e agradável de ler, é talvez uma boa porta de entrada para este autor que é, ao mesmo tempo, genial e perturbador.

(Ian Caetano é estudante de Ciências Sociais, comunista, ex-preso e ainda vai escrever um livro)

Leia também:

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias