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Sou daqueles...

Doracino Naves Especial para  Diário da Manhã

Sou daqueles que já subiram em ônibus, usaram bicicleta para ir ao trabalho, viajaram de trem de Araguari a Goiânia, e pernoitaram em rede enquanto a gaiola atravessava o Rio Amazonas. Também tive um fusca azul com rádio e toca-fitas modernos. Sou assim, vivo e guardo coisas para contar depois. Noutro dia, no Setor Oeste, próximo ao Pão de Açúcar, descobri uma nova profissão ao avistar uma mulher com seis cachorros quase que pendurados por finas correntes com tem-tenzinhos coloridos. Estava escrito na camiseta vermelha: “Passeadora de cães.” Enquanto os cães faziam cocô ela dedilhava um Iphone. Hábitos modernos. Hoje, por escolha, ando a pé pelas ruas e esquinas.
Fui engraxate no mercado da Vila Nova para ganhar uns trocados e ir ao cinema. Na Avenida Anhanguera com a Rua 24 os gibis usados ficavam expostos para venda e troca; havia até câmbio negro. As sacanagens de Carlos Zéfiro custavam mais. Hoje, minhas mãos tremem e o coração acelera quando abro um livro de Fernando Pessoa; poeta de mil facetas.
Muitas vezes, literalmente, arrisquei a pele para tomar banho no Córrego Caiapó, em Palmelo. Num desses dias apanhei de chicote trançado com tiras de couro de boi; o sinal da lambada ficou na perna por muitos anos. Também já pulei num lago, em Pium, para pegar uma capivara pela perna. Certa vez corri na praia do fuzil, no Rio Araguaia, atrás de um jacaré pequeno. Peguei-o pelo rabo; com a boca amarrada foi jogado na canoa. Hoje, de guarda-chuva azul, bordas amarelas, caminho sob as intrépidas águas de março que desabam do céu trovejante.
Quando interessava por alguma moça escrevia patéticas cartas de amor. Compus singelas peças de teatro que encenávamos no fundo do quintal da casa dos meus pais. Organizei rituais e cerimônias usados na maçonaria. Hoje, escrevo despretensiosas crônicas para o Diário da Manhã. Nesse tipo de escrita sempre escolho a amenidade às mazelas e maldades. Fujo do confronto sem causa.
Passei pela direção de grêmio estudantil em plena ditadura militar, nos anos sessenta. Estive vereador por Goiânia na legislatura de 1988 e 1992. A cultura foi o meu foco. Acompanhei, de longe, como eleitor, Henrique Santillo no seu ideal sobre o sofrimento do povo. Santilo foi um estadista que ficou sozinho à beira da estrada ideológica. Hoje, percebo os políticos como uma classe abúlica em relação às reformas que a população deseja.
Sou daqueles que gosta de andar a pé pelas calçadas; desniveladas e perigosas. Gostaria de voltar a viajar de trem. Vejo filmes antigos; prefiro os que me levam para longe da morbidez da televisão brasileira. Hoje, gosto de ver Brad Pitt e os filmes com roteiros argentinos.
Não tenho mais idade para arriscar a pele nas aventuras em córregos, lagos ou rios. Prefiro andar de guarda-chuvas aberto sob as chuvas amenas que caem nesta manhã. Quem sabe, ao final do dia, um chocolate quente. Ou a promessa de um sorvete nas futuras tardes de primavera na Praça Tamandaré. Tem hora que penso que minhas aleivosias vão me levar à loucura. Não sei se é pela mediocridade do meu jeito de viver ou se vem pela loucura dos outros.
Por essa causa escolhi a ideia de um Deus Todo-poderoso à dubiedade da maçonaria em relação ao sagrado. Fico louco com a falta de unção da maioria das pregações religiosas. Acho até que ando meio louco.
Assisto ao mundo de fofocas e polêmicas políticas nas redes sociais onde persiste a guerra das conveniências. O sangue da notícia policial gruda na tela da televisão. Desaprendo com tudo o que vejo e sinto.
Sei que nada sei; é a única certeza. Estou ficando louco com a superficialidade de tudo e a falta da poesia para enfrentar o adverso.
Neste fim de semana vou, com a amada, para Piracanjuba.
Talvez sentar num banco tosco, à beira de um fogão caipira, ouvir as histórias interessantes dos roceiros sabidos e encontrar lenha nova para outras crônicas.
Sou daqueles que traz a loucura de todos os tempos para dentro de si.
Sou daqueles loucos... loucos...

(Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no
DMRevista)

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