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Em 1984 “2+2=5”, basta o partido querer - duplipensando a distopia crítica de George Orwell

Estamos dando à linguagem sua forma final – uma forma que vá ao ponto em que ninguém fale de outro jeito. Quando tivermos terminado isso, pessoas como você terão de aprender tudo de novo. Você deve pensar, eu ousaria dizer, que nosso grande trabalho está em inventar novas palavras. Mas não é! Estamos destruindo palavras – dezenas delas, centenas delas, todos os dias.

FICHA TÉCNICA

Título: 1984 (Nineteen Eighty-four)

Autor: George Orwell (Britânico) 1903-1950

Data da 1ª publicação: 1949

pág. 7 - Big-Brother-1984-America-2014

George Orwell não nascera o famoso escritor inglês que tanto impactou os que dele tiveram nota, mas nascera Eric Arthur Blair em Índia, no ano de 1903, quando esta ainda era colônia britânica.

Este Eric era um filho de família de classe-média, que anos depois vai estudar, e graduar-se em 1921, na Inglaterra. Ele começa a incipientemente avaliar as severas desigualdades e abusos de poder existentes na Inglaterra daquele período e, por consequência, nas colônias.

Pouco depois de graduado, ingressa na policial imperial, pois “se você quer odiar o imperialismo, você tem de ter sido parte dele”. Cinco anos depois abandona a ocupação e passa a dedicar-se à carreira que o notabilizaria, a de escritor. Sabemo-nos todos que esta não é exatamente a carreira de mais fácil ingresso que existe, de tal feita que Eric Blair chegou aos limites da pobreza e trabalhou, dentre outras coisas, em uma mal-remunerada função de lavador de louças.

A experimentação da pobreza deu-lhe elementos para a redação de sua primeira obra Down and Out in Paris and London, de 1933; seguida de uma semi-autobiografia chamadaBurmese Days, de 1934, que relata seu tempo na polícia imperial, seguida por diversas outras obras, tanto ensaísticas quanto romances ficcionais. Mas é mesmo por Animal Farm, de 1946, e 1984, de 1949, que este nome, mais frequentemente, vem à cabeça dos leitores.

Sob o pseudônimo de George Orwell, Eric Blair assinou estas duas obras primas, ambas (como quase toda a sua obra) com explícito engajamento político. Orwell era um comunista de posição delicada, já que se posicionava em frontal oposição ao regime implementado pela antiga União Soviética. Sofreu inclusive com tramoias políticas, uma vez que os EUA usaram seu livro Animal Farm (que é uma sátira à URSS), como uma crítica ao comunismo, apropriação que o autor não legitimava, uma vez que era comunista e que não considerava aquilo que ocorria na União Soviética desta forma.

Sem dúvida uma das mais inventivas distopias já criadas, rica tanto estética quanto conceitualmente. Não será possível, a todo instante da leitura desta obra, não olhar para os lados e para trás, na suspeita de estar sendo observado.

1984 nos apresenta um mundo, um que foi remodelado na composição de apenas três continentes: Oceania, Eurasia e Eastasia. Os eventos relatados ocorrem na primeira.

Estes três continentes vivem em guerra, desde sempre, por razões políticas, mas também por um terreno “neutro” (que seria a nossa região da África) que permanece em disputa pelas três potências. Oceania é governada por uma figura de notável proeminência história, o Big Brother, responsável por tirar Oceania do caos e da miséria e tê-la elevado, novamente, a um estado de bem-estar e condições de vida razoáveis.

Os habitantes têm as chamadas Telescreen, televisores que transmitem os programas autorizados pelo governo e que, também, recebem imagens e sons daqueles que os assistem, de modo a manter a uniformidade do comportamento e a antecipação de elementos dissidentes.

O partido do Big Brother é o IngSoc (Socialismo Britânico), que controla a produção, a cultura, e as relações sociais em geral, a partir de quatro ministérios: Ministério da Paz (cuida das defesas e das questões de guerra); Ministério da Agricultura (questões econômicas, racionamento, etc.); Ministério da Verdade (questões da educação, da informação, da cultura, etc.) e o Ministério do Amor (questões da ordem e da lei).

Neste panorama – bem mais rico do que me permite o limite deste texto relatar – nos é apresentado um funcionário do Ministério da Verdade chamado Winston Smith. Ele, como todos que trabalham no ministério, é membro “Outer” (de menor relevância) do partido. Sua função no Ministério da Verdade é fabricar notícias encomendadas pelo partido e, também, adulterar notícias antigas (em uma clara referência às práticas Stalinistas de revisão da história).

Winston é bom no que faz, mas sempre teve uma certa comichão interior quanto às formas de gestão nas quais vivia. Não poderia o mundo cessar a guerra? Não poderia a escassez de alimentos ser controlada? Não poderia o casamento deixar de ser mediado pelo partido?

Estas e diversas outras questões o afligiam em sua cabeça. Não as podia professar, pois qualquer oposição às diretrizes do partido era punida de forma escabrosa. Tampouco podia falar sozinho, no aconchego de seu lar, uma vez que as Telescreens a todo tempo estava gravando e ele poderia ser pego pela Thought Police.

A razão de todos os males existentes, da interminável guerra, da ainda existente penúria, era o fato de o partido ainda não ter conseguido por as mãos no inimigo número um do povo Emmanuel Goldstein, autor da Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico. Este livro era uma abominação, se pego deveria ser imediatamente incinerado, pois propunha, segundo o partido, coisas inadmissíveis, coisas que questionavam os postulados do partido e do Big Brother “Guerra é paz”; “Liberdade é escravidão”; “Ignorância é força”; sentenças essas que, associadas ao “Big Brother está observando você” formulavam as diretrizes básicas de operação do governo vigente.

Nem mesmo a língua escapava do controle do partido, este sistematicamente desenvolvia adaptações que se conformaram como um novo idioma oficial, o Newspeak. Onde palavras eram destruídas e sentidos aglutinados, tentando minimizar ao máximo os sentidos e enviesá-los conforme o interesse do partido.

E é por um elogio que Winston recebe por sua aplicação do newspeak que O’Brien nos é apresentado. Um figurão do Ministério da Verdade e membro “Inner” do partido. O’Brien, assim como Winston, tem algumas perguntas mal resolvidas sobre as formas de gestão, de modo que começa a travar algumas discussões com Winston.

Winston, por sua vez, envolve-se com uma jovem rebelde (que se disfarça muito bem de notável partidária) chamada Julia. Ambos começam a ter relações não consentidas pelo governo (uma vez que todo e qualquer relacionamento deve passar pelos ditames do partido). Este emaranhado tem uma resolução não só surpreendente como, simultaneamente (no melhor estilo Doublethink), devastadora e instigante.

Uma história com momentos angustiantes e com discussões críticas que venceram o tempo. Evidentemente saber do contexto no qual o livro foi escrito ajuda sobremaneira no entendimento das críticas e das pequenas ironias, mas lê-lo, enquanto tal, já é experiência digna de replay. Como eu disse, é um universo demasiado rico para que eu, em minhas módicas habilidades, o conseguisse expô-lo aqui, mas, peço encarecidamente, creiam-me quando digo que é, por certo, um dos cânones da literatura e, certamente, um baluarte da distopia crítica.

Se te importa saber o que é o Doublethink, a sala 101, o que realmente ocorre no Ministério do Amor, quem são os pobres e o proletariado; qual a grande vontade de Winston e qual é a única grande coisa “que eles não podem tirar de nós”, este é o livro.

Algumas vezes – disse ela – eles te ameaçam com algo; algo que você não pode suportar, não pode sequer pensar sobre. E então você diz: “Não faça isso comigo, faça isso com alguma outra pessoa, faça isso com aquele, ou com aquela.” E talvez você queira fingir, depois, que era apenas uma encenação, e que você apenas falou aquilo para fazê-los parar, que não queria realmente que ocorresse com outras pessoas. Mas isso não é verdade. Quando isso acontece, você realmente quer que ocorra com outra pessoa.

(Ian Caetano é comunista, ex-preso e ainda vai escrever um livro)

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