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CULTURA

Barco solitário

Norman Douglas, romancista inglês, fez da Ilha de Capri o palco da sua vida. Antonio, da Gráfica Kelps, faz de Aruanã sua terra adorada; o lugar de desafogo das agruras do dia-a-dia. Pescador incansável, Antonio descobre lugares de boa pescaria que nem os índios Carajás conhecem.

No porto de Aruanã a canoa solitária lembra a foto da ilha de Capri com um barco vazio deixado entre os rochedos da marina. Um grupo de meninos com varinhas de bambu, corpo tatuado de poeira e suor, observa o que se passa. Vejo o rio Araguaia como o fotógrafo viu o mar de Capri; do alto. Ele no rochedo, eu, no barranco do rio. Lá em baixo, o boto belisca os peixes que, desesperados, fogem para a rasura; o tuiuiú, numa perna só, espera. Os dois predadores tramam contra o cardume; o boto ataca e o tuiuiú fica na rasura; deixam o céu livre para o martim-pescador. O tuiuiú pega um peixe; no bocal do boto outro peixe com um ainda menor na barriga. Cada um sobrevive como pode. A luz do sol surfa suave sobre as ondas de águas prateadas.

Meus pensamentos saem da água. Galopam no tempo com as rédeas soltas no silêncio das nuvens de algodão. Terra, água e o céu sopram o fogo ancestral das eras.

Há algo em comum entre as cores de Casablanca e a alma húngara que perambula pelas ruas de Budapeste? Será que a elegância dos trajes coloridos e a bravura dos guerreiros Massais tem relação com a escola de Belas-Artes de Paris? Qual a ligação entre o místico Juazeiro do Norte e o Palácio de Queluz? Talvez o elo comum seja o mistério transcendente dos deuses. Por fim, por que Hermes Trismegisto esconde dos Carajás a arte de fazer ouro? Daí a areia do Araguaia seria ouro em pó. Hermes não revelou o código da transmutação de metais, mas tingiu de amarelo-ouro as escamas do peixe Dourada.

Volto ao porto de Aruanã. A canoa continua abandonada. Nessa época do ano as praias mostram o lombo como se fosse o pirarucu que precisa de ar. Em junho já tem acampamento às margens e nas ilhas de areia que aparecem no meio do rio. Para o poeta Edival Lourenço, autor de O Elefante do Cego, o vale do Araguaia é o jardim do éden dos goianos. Daqui uns dias, nas férias de julho, com a ressaca da festa de Trindade e da Copa América de futebol, começa o ronco dos motores das voadeiras. Depois da confusão tudo volta ao hábito antigo no rio que corre certeiro para o mar.

O menino magricela se levanta da praia onde está a canoa; dá um rápido mergulho para tirar a areia do corpo. Sacode a cabeça acima da superfície; os cabelos balançam para tirar o excesso de água.

Matrinchãs assustadas passam por baixo da canoa vazia. O tuiuiú, de barriga cheia, sobrevoa o boto que brinca nas águas do Rio Araguaia. Tudo parece calmo naquelas paragens.

Longe, no mar mediterrâneo, um golfinho flutua sobre ondas do mar de Capri.

O sol forte acende os bancos da canoa solitária de Aruanã.

Um barco vazio, seja em Capri ou no Rio Araguaia, é triste e assustador quanto um teatro abandonado.

(Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, escreve aos sábados no DMRevista)

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