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CULTURA

Fora de lugar - parte 1

"Essa história é fictícia. Afinal, professor ser responsável pela Segurança Pública seria tão absurdo quanto Polícia Militar ser responsável pela educação".

Quando ele acordou, tudo parecia fora de lugar. O governador havia decretado que ele, professor, seria responsável pela segurança pública. Sua função era fazer o policiamento ostensivo das ruas. Se armou até os dentes, com seu estojo cheio de giz, dois livros grossos, Paideia de Werner Jaeger e Ser e Tempo de Martin Heidegger, e se mandou.

Com seu Chevette velho, se dirigiu à casa de sua colega Juliana, uma professora de literatura, especialista em Julio Cortázar. Trazia o grosso Jogo da Amarelinha sob os braços e parecia bastante nervosa.

A primeira missão: fazer a ronda da Avenida Rio Verde. Marcos e Juliana deveriam percorrê-la, de um lado a outro, preventivamente, observando minuciosamente cada transeunte que passava pelas calçadas.

Quem conhecia Juliana, poderia pensar que não havia, para ela, nada de novo naquela missão. Tinha, não sabe como e nem quando, desenvolvido o gosto por observar as pessoas nas ruas. “Ela tem os olhos literários.” Costumava dizer o próprio Marcos. “Era capaz de se deter por horas no simples movimento dos pés de um sujeito desconhecido.”

Um dia, ao notar o modo como Jonathan, um de seus alunos, se movia, passou a tarde toda a refletir: “A gravidade nos empurra tanto para baixo, que permanecer de pé, todos os dias, é mesmo uma atitude de muita teimosia. Algumas pessoas fazem um esforço tão grande que andam sempre de uma forma atraentemente desajeitada, de modo que achamos que elas vão simplesmente se desmoronar a qualquer momento, provavelmente no próximo passo. Mas, não, não caem, não fisicamente. Permanecem de pé, vitoriosas em seus corpos balançantes”.

Mas, ali, naquele carro, em sua nova função, em meio ao medo, tudo era diferente. Na calçada, quando um velhinho levara as mãos ao bolso, não se passaram segundos, mas minutos, horas, dias, antes de retirar não uma arma, mas um pequeno pedaço de papel onde talvez estivesse escrito o número da senha do banco que já não recordava de cabeça ou, quem sabe, as últimas palavras da mulher que segurara aquelas mãos por uma vida inteira até deixá-las soltas no ar a se contentar com bolsos e frases perdidas em pedaços de folhas arrancadas de caderno. “É estranho”, disse Juliana. “Quando olhamos para as pessoas buscando notar qualquer atitude suspeita, tudo nela nos parece mesmo exageradamente suspeito.”

“O mais terrível é que pode ser qualquer um.” Disse Marcos, já em desespero. “Aquela senhorinha corcunda andando com dificuldade com um cajado nas mãos, o senhor cego sentado no banquinho da casa, a criança que brinca de bola na esquina. Qualquer um.”

A primeira meia hora foi, assim, de profundo desespero. Mas, na medida em que o tempo passava, ia se formando, paulatinamente, na cabeça estudada dos dois professores, um critério cada vez mais rígido de seleção. Não poderiam simplesmente suspeitar de qualquer um, posto que qualquer um era muita gente. E essa ideia geral lhes causava verdadeiro pânico e sensação de impotência.

Foram, então, excluindo de sua atenção, primeiramente, os demasiadamente velhos. Depois, os bem vestidos. Mais tarde, os brancos. Uma hora depois, as mulheres, e por fim, já tinham voltado os seus olhos, única e exclusivamente, aos jovens negros e pobres.

E tudo isso se deu automaticamente, quase como uma reação física do próprio corpo, sem que sequer notassem que assim o faziam. Afinal, quão confusa não ficaria a cabeça de um professor de Filosofia, que discutia e condenava o racismo em sala de aula, se percebesse qual era, no fundo, lá no fundo, o imaginário ao qual recorria nos momentos de desespero?

Avistaram, adiante, o suspeito perfeito. Era jovem e negro, e ainda caminhava arrastando os chinelos sobre o asfalto como se escrevesse no chão: perigo!

Medo. “O que faremos? Talvez uma aula sobre a ética kantiana?”

“Acho que lições sobre o imperativo categórico de Kant não será muito útil nestas condições. Melhor empunharmos os livros. Qualquer movimento brusco, uma livrada.”

“O estojo”, disse Marcos. “Uma estojada dói mais. Aprendi quando ainda era estudante.”

Enquanto jogavam agressivamente o carro para cima do suspeito, naqueles poucos segundos entre o girar do volante e o levantar das rodas sobre a calçada, Juliana ainda foi capaz de lançar os olhos sobre o movimento desesperado dos pés do garoto. Era Jonathan, seu aluno. Pessoas como aquela, não simplesmente levantam uma perna depois da outra para poder dar um passo. Não, pessoas como Jonathan, quando erguem suas pernas para andar, estão chutando todas as leis da natureza, matando o próprio Deus, desafiando o Universo.

“Os olhos!” Pensou. “Nossos olhos já estão virados. Olhos-vigília, olhos-gatilho. Como eles se voltarão para os nossos alunos quando retornarmos para a escola? Escrevinhando-os de cima a baixo, como suspeitos e criminosos em potencial?” Mas, isso, se um dia retornarem. Naqueles tempos, nada era muito normal e tudo estava, definitivamente, fora de lugar.

CONTINUA...

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