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CULTURA

A Hora da Morte

Foto: Gabriella Campos

Gabriella Campos

Certa noite, me vi despenhar em queda livre. Senti o vento obliterar minha respiração. O remanso da alma e o frio ardente que antecede o espetáculo de um condenado ajustava-se alí. Crianças de cara vermelha, vestidas com seda preta. As vestes cintilavam como um farol vindo do horizonte na superfície do mar escuro. Tal reflexo incandescia os olhos. Meus gritos entoavam embalados à melopéia dos anjos. Não podia respirar, mas ainda estava alí. Como num ato de misericórdia, agonizavam a minha morte. Numa súplica esperança busco me lembrar.

19h30. Me despedi de Catharina. No elevador, observo meu reflexo no espelho. Me sinto velha e cansada.

20h45. Seco a louça do jantar. Nico se envolve em minhas pernas como quem deseja afago. Apago as luzes. Exceto da sala. Esta clareia a entrada.

21h40. A exaustão faz morada em meus ombros. Fecho o livro na página 69. Apoio meus óculos sobre o criado. Nico já se encontra recostado em meus pés.

De modo repentino e cruel me volto para o local final. A memória em desconexo com o que me parece realidade. Me esforço para enxergar sob meus pés. Deparo-me com a nudez visceral. De peito aberto, vejo meu coração lutar fora do corpo. Tão vulnerável e apavorado que parece não haver espaço para meus pulmões. Um sádico prazer reveste meu corpo, me remetendo a um desígnio de consolação.

Vejo meu reflexo numa rocha brilhosa de tamanho descomunal que integra o nimbo macabro. Me sinto velha. Por um segundo, quase que incalculável, sinto o cheiro do aspargo que guardei na geladeira. Este agora parece estar guardado há dias.

Em certo momento, por um devaneio de pensamento, ouço o barulho fragoroso de minha ossada se fragmentando ao ser lançada contra o chão. Quase tão rápido quanto a velocidade da luz. Me recorda os homens da fazenda. A cada pancada fracionando estacas de mogno.

Logo, o silêncio e a desaparição das caras vermelhas tomam minha atenção. Percebo que me encontro coberta pelo dossel, quase transparente, num berço coberto por espinhos e lanças medievais. Tão acolhedor que por um instante o assemelhei aos meus lençóis.

Tragada pelo escuro e asfixiante local, me atento ao brilho na cimeira de cada estaca, estando elas voltadas para cima, apontando para a luz que me clareia do alto. Esta se mistura com o brilho dos olhos de uma pantera que agora se faz presente. O bicho observa-me de baixo para cima. Com o olhar nefasto, se prostra aos meus pés, como num ritual fúnebre. Procuro por meu livro. Página 70. A hora da morte.

Gabriella Campos, escritora e artista plástica

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