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CULTURA

Princesa das calçadas

Ludimila Mendonça

“Limpe São Paulo, mate um travesti por noite” pichação em um muro paulista na década de 80. Quem contou sobre essa mensagem de ódio rabiscada na rua viveu na carne o preconceito e a intolerância. O nome dela é Fernanda Farias de Albuquerque, a travesti que teve sua vida registrada em um livro, uma história que o autor italiano Maurizio Jannelli ajudou a contar.

Maurizio e Fernanda se conheceram em uma prisão italiana e dessa relação de cárcere surgiu o registro da vida da travesti. O livro foi escrito em primeira pessoa, como se Fernanda o tivesse escrito e Maurizio deu forma à narrativa mal construída da prostituta de pouco estudo. Juntos escreveram o livro reportagem Princesa.

Maurizio era militante das Brigadas Vermelhas. Brigada Vermelha (Brigate Rosse em italiano) era uma organização paramilitar de guerrilha comunista italiana formada no fim da década de 60. Jannelli participou de várias ações consideradas terroristas, que lhe valeu uma sentença de duas prisões perpétuas. Na prisão conheceu Fernanda, presa por esfaquear um homem e sentenciada a seis anos.

A batalha

Fernanda nasceu Fernando no interior da Paraíba, cidade de Alagoa Grande. Abandono paterno, pobreza, sofrendo consecutivos abusos sexuais, resolve fugir da triste realidade de casa para viver a triste realidade das ruas. Moça que vai pra guerra, pinta o rosto e precisa de um nome que lhe dê coragem de enfrentar a batalha fria das ruas paulistas, Princesa.

Na década de 80, com o sonho de glamour, muitas travestis se mudaram para a Europa. Lá continua se prostituindo nas ruas de Milão e se torna dependente de heroína. Sua prisão veio no começo da década de 90 com uma acusação de tentativa de homicídio de uma prostituta. Na prisão descobre ser portadora do vírus da aids.

Na real tudo que ela sonhava era juntar grana com a prostituição e fazer uma operação de mudança de sexo. Encontrar um bom marido gringo que cuidasse dela e tornar-se uma boa dona de casa. Assim conta o cineasta Henrique Goldman.

O livro

No livro Fernanda conta da violência que a cidade impunha aos travestis que ganhavam a vida na calçada. Violência policial, violência do “cidadão de bem”. Sobre as colegas de rua assassinadas pelo ódio irracional do preconceito. Sobre o vício em álcool e drogas para suportar o frio e a solidão de São Paulo. Todos os relatos enriquecidos pelas palavras de Maurizio.

Na capa estão as duas assinaturas: a de Fernanda e a de Maurizio Jannelli, juntos compartilharam o cárcere na prisão em Rebibbia e o trabalho de escrever o livro. Na narrativa havia também um terceiro preso de origem Sardenha Giovanni Cotonetes, que fez a ponte entre o autor e a travesti e convenceu Fernanda a escrever sua história.

Em 1994, o livro foi publicado e traduzido em português, espanhol, alemão e grego. Por pouco tempo Fernanda é admitida como secretária na editora que publicou o livro, mas as ruas chamam por ela, então deixa o trabalho para retornar à vida anterior.

O filme

O diretor brasileiro Henrique Goldman transformou a história de Fernanda em filme. Ele mergulhou de tal forma no projeto que teve a vida pessoal prejudicada e ainda teve que entregar o cachê que ganharia como diretor para completar o orçamento e terminar as filmagens.

A Fernanda do filme acaba por superar a dureza da vida e aprende a amar a vida. Diferente da Fernanda da vida, sucumbiu as batalhas de rua e no ano 2000 ela suicidou-se aqui no Brasil. Fernanda inspirou a criação da organização Princesa pelos direitos dos transexuais.

Na época o filme não foi lá um sucesso de bilheteria, mas ganhou um prêmio de melhor filme estrangeiro no festival OutFest de Los Angeles e acabou ganhando o mundo. Goldman disse que em alguns países seu filme foi distribuído como filme gay, ou erótico, mas para ele era apenas uma história de busca de identidade.

Cena do filme Princesa

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