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CULTURA

‘Brasil produz amnésia e esquecimento’

Texto: Renato Dias

Edição: Marcus Vinícius Beck

Infográfico: Elson Souto

Tardia e incompleta, a Justiça de Transição no Brasil será concluída apenas quando o País cumprir o ciclo de Justiça, Memória e Verdade, com a elucidação dos crimes de violações dos direitos humanos ocorridos sob a ditadura civil e militar [1964-1988]. É o que afirma, com exclusividade ao Diário da Manhã, o ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e ex-membro da Corte Interamericana de Direitos Humanos, jornalista e cientista político, Paulo Vannuchi. O que há, hoje, é a produção sistemática do esquecimento, explica.

- Da escravidão, do Estado Novo, da ditadura civil e militar.

O que estamos fazendo com o nosso País, hoje? É o que questiona o ativista. Um  ex - preso político à época da luta armada, como militante da Ação Libertadora Nacional

Escravidão

O pesquisador revela ao DM que até Ruy Barbosa, ícone do Direito e dos advogados no Brasil, como ministro de Estado, teria determinado que se queimassem os arquivos do escravismo colonial. O hino da República, produzido um ano depois da abolição, ocorrida em 1888, traz um verso elucidativo, pontua. Para que as crianças cantem nas escolas. “Nem sequer cremos que escravos tenham havido outrora em nosso País”. Com isso, ocorre a produção do esquecimento e, ao fazê-lo, você contribui para que crimes se perpetuem, diz.

- Fernando Henrique Cardoso deflagrou a abertura. Com a Lei 9.140 e a criação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos.

Pela crise política pós- golpe de 2016, elegeu-se Jair Bolsonaro, um ferrolho ao direito, à memória e à verdade

Paulo Vannuchi informa ainda que sob Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-operário metalúrgico que subiu a rampa do Palácio do Planalto em 2003 e 2007, por dois mandatos consecutivos, a Justiça de Transição se desenvolveu. Já a ex–guerrilheira urbana da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares [Var-Palmares], presa e torturada, prisioneira da Torre das Donzelas, como mostra o filme “A Torres das Donzelas”, Dilma Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014, criou a Comissão Nacional da Verdade que desnudou os tempos sombrios do Estado de Exceção, frisa.

- Pela crise política pós-golpe de 2016, elegeu-se Jair Messias Bolsonaro, um ferrolho no tema direito à memória e à verdade.

Jair Bolsonaro

Direito Internacional

No Direito Internacional dos Direitos Humanos, na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas [ONU], fundado também no Pacto Mundial Contra a Tortura, do qual o Brasil é um dos signatários, e na Carta Magna Cidadã, promulgada em 5 de outubro de 1988, um dos participantes e redatores do “Projeto Brasil Nunca Mais” [1979-1985], o especialista insiste que Jair Messias Bolsonaro passará. “As vozes dos mortos e desaparecidos políticos continuarão a se fazer ouvir até que o Brasil complete o ciclo da Justiça de Transição.”

- A Alemanha aprendeu com o nazismo, processou os nazistas e o nazismo é ensinado nas escolas. As crianças são obrigadas a visitar campos de concentração.

Há um fio de continuidade entre o escravismo colonial, a casa grande e a senzala, o Estado Novo [1937-1945] e a ditadura civil e militar [1964-1985] na execução de homens e mulheres, crianças e adultos, em 2019, de negros nas periferias e a tortura permanente no sistema penitenciário no Brasil. O vínculo é direto e extremo, atira. Com a consciência do passado, um país se prepara para corrigir sua história, ensina. Quando existe a cultura de ‘não investigar, não abrir as feridas’, o que é falso, já que ‘somente as feridas lavadas cicatrizam’, observa ele.

- É o que diz a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, maior autoridade do mundo em direitos humanos.

Jair Bolsonaro não é o Brasil, é um acidente em nossa história

Barbárie 2019

O que estamos fazendo com o nosso País, hoje? É o que questiona o ativista. Um ex - preso político à época da luta armada, como militante da Ação Libertadora Nacional. A ALN, fundada por Carlos Marighella, carbonário baiano assassinado, a sangue frio, em 4 de novembro de 1969, em São Paulo. Não pode haver tortura, nem descalabro no sistema prisional, ataca. Sérgio Moro intervém em presídios em nome do suposto combate ao crime organizado, relata. É barbárie, denuncia. A barbárie no Brasil ganhou força nas eleições do ano passado, lamenta.

- Elegeu-se presidente da República um homem que, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, fez homenagem ao maior torturador brasileiro: Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Carlos Alberto Brilhante Ustra

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Ditadura

Fardados e civis derrubaram em 31 de março, 1º e 2 de abril de 1964 o presidente da República, João Belchior Marques Goulart. Com tanques e metralhadoras. Com o aval do Supremo Tribunal Federal, a corte suprema. O Congresso Nacional referenda a posse de Raniére Mazzilli e a indicação do primeiro general-presidente, o marechal Humberto Castello Branco.

Gaúcho de São Borja, ex-ministro do Trabalho, responsável pelo aumento real do salário mínimo, Jango, como era conhecido, é um herdeiro do nacional-estatismo. Em sua versão trabalhista. De Getúlio Vargas, rotulado de ‘Pai dos Pobres’. Getúlio Vargas suicidou-se às 8h30, do dia 24 de agosto de 1954, em seus aposentos presidenciais, no Palácio do Catete.

A capital do Brasil, à época, era o Rio de Janeiro. Outrora Cidade Maravilhosa. Com a queda de Jango, 21 anos de ditadura civil e militar [1964-1985]. A operação teve a ostensiva participação dos Estados Unidos das Américas. Um saldo societal trágico. Com 479 mortos e desaparecidos políticos. Assim como 1.700 trabalhadores rurais executados. Além de 10 mil pessoas exiladas.

O projeto Brasil Nunca Mais, organizado pelo Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright, registra que duas mil pessoas, perante o Superior Tribunal Militar, o STM, denunciaram terem sido torturadas. Na cadeira-do-dragão, socos, pontapés, telefones, pau-de-arara. A jornalista Míriam Leitão teve de ficar em uma cela com uma cobra ao seu lado.

Relatório

Relatório da Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012 e encerrada dia 10 de dezembro de 2014, aponta que seis mil membros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Força Pública foram demitidos ou reformados. Um Grupo de Trabalho da CNV diz que 12 mil indígenas morreram sob a ditadura civil e militar e sua política indigenista e de obras faraônicas.

Pasmem: 39,5 mil trabalhadores e trabalhadoras foram reconhecidas pela Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília [DF], a Capital da República, a terem direito à reparação econômica ou pensões. Por danos materiais, políticos, sociais e simbólicos. Medidas que prejudicaram as suas vidas. Tanto civis quanto militares.

Mais: a ditadura civil e militar, no Brasil e em Goiás, promoveu uma violenta censura às artes, publicação de livros, à imprensa, aos filmes, peças de teatro. Artistas eram perseguidos, presos, espancados e exilados. Como Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados na Inglaterra; Chico Buarque, na Itália; Geraldo ‘Caminhando’ Vandré. Jornais destruídos. ‘Empastelados’.

AI-5

O Ato Institucional Número 5, de 13 de dezembro de 1968, fechou o Congresso Nacional, a Câmara Federal, Senado da República, assembleias legislativas e câmaras municipais. Centenas de governadores, prefeitos, senadores da República, deputados federais, deputados estaduais, vereadores foram cassados. Em 1980, Luiz Inácio Lula da Silva foi preso. Greve sob a LSN.

Luiz Inácio Lula da Silva durante discurso na greve do ABC, em 1979

O Congresso Nacional aprovou, em 26 de agosto de 1979, a Lei de Anistia. A medida sancionada não foi ampla. Nem geral. Muito menos irrestrita. Os agentes do Estado pagos com o dinheiro do contribuinte para garantir a segurança pública, responsáveis por violações dos direitos humanos, assim como a sua cadeia de comando, receberam uma autoanistia da União.

Direitas

A direita explosiva matou, com uma bomba endereçada a Sepúlveda Pertence, a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil, Lyda Monteiro, em 27 de agosto de 1980. Um atentado à bomba no Riocentro, 1981, Rio de Janeiro, no show de Primeiro de maio, dia internacional dos trabalhadores, deixou os executores feridos. Um morto. O crime permanece até hoje impune.

O jornalista Alexandre Von Baumgarten, indigesto à ditadura civil e militar, acabou assassinado, em 1982. A campanha das diretas de 1983, que exigia o direito elementar de votar, caiu com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, em 25 de abril de 1984. Contra o que poderia ser uma ‘revolução democrática’. Como apontara o sociólogo da USP Florestan Fernandes.

O Colégio Eleitoral é instalado. Tancredo Neves morre. José Sarney, ex-presidente da Arena e do PDS, legendas de sustentação da ditadura civil e militar, em ironia da História, assume. A Carta Magna sai em 5 de outubro de 1988. Com a manutenção da tutela das Forças Armadas como garantidora da Ordem Política e Social. Em 2019, militares estão em 30 órgãos da União.

- Um passado que não passa.

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