Cultura

Distopia glauberiana, ‘Terra em Transe’ dialoga com realidade bolsonarista

Diário da Manhã

Publicado em 9 de abril de 2020 às 02:17 | Atualizado há 4 meses


Cena do longa-metragem ‘Terra em Transe’ – Foto: Reprodução

Enquanto isso, no comício de Vieira, personagem inspirado em figuras como Miguel Arraes, um sujeito simples se arrasta em meio à multidão e ouve palavras amigáveis de dois apoiadores. Quando a voz do homem se escancara aos berros da miséria de Eldorado, a ação passa a ser embalada por gente ruminando, vejam só!, coisas como “extremista”. Faltou latir os delírios dos asseclas do ex-capitão expulso do Exército por maluquices como fulano é comunista, beltrano é socialista e, portanto, “vão pra Cuba”. Aí, porém, é demais, até para a imaginação glauberiana.

Mesmo com cenas que poderiam muito bem se passar nestes tempos malucos de bolsonarismo fanático, o cineasta levou dois anos para findar a pesquisa de quase 700 páginas que dera origem ao roteiro. O primeiro rascunho, que é datado de 1965, um ano depois de Glauber ser consagrado em Cannes com “Deus e Diabo na Terra do Sol”, conta com referências a homossexualidade, religiões de matrizes africanas, críticas a Petrobras e trabalho escravo. Glauber Rocha não é considerado um gênio à toa.



Cartaz do filme – Foto: Reprodução

“Terra em Transe” foi recebido com polêmica. Embora fosse amante de discussões, o gênio da raça não passou despercebido pelas críticas. “Direita/ centro/ esquerda me detestam. Se alguém quiser me dar um tiro, pode”, disse Glauber em carta. O que, vamos e venhamos, não faz muito sentido. Sim, anos depois, em 1974, o diretor filmou a queda de António Salazar, tirano que assaltou Portugal por décadas com sua ditadura fascista. “As Armadas e o Povo” é uma documentário essencial para entender o cinema-direto em strictu sensu.

Longe do grande público e achincalhado pela esquerda, Glauber adoece. E morre. Aos 42 anos, a grande voz do cinema novo foi-se – de infecção generalizada, disseram os laudos médicos. Há quem, como o jornalista Zuenir Ventura em “Minha Memória dos Outros”, ache que o mal era mesmo tristeza e solidão. Mas, como seu personagem Paulo Martins, Glauber “não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura”. 

Ficha técnica

‘Terra em Transe’

Autor: Glauber Rocha

Gênero: Distopia

Filme disponível no Youtube e no Now, da Claro Net



“Vamos dar um golpe, virar a mesa, fazer história. Se houver eleições, Vieira ganha. Se não houver, ganho eu”, trama o líder conservador Porfírio Díaz a Júlio Fuentes, dono de um dos principais meios de comunicação da República de Eldorado, fictícia ilha tropical onde são ambientados embates políticos. O diálogo, uma crítica cortante aos fardados que comandaram o Brasil por 21 anos, poderia ser adaptado para a distopia pela qual o País vem passando no âmbito da crise provocada pelo novo coronavírus.

A mensagem de “Terra em Transe”, do diretor Glauber Rocha, ainda ecoa pela sociedade brasileira. Listada entre os cinco melhores filmes nacionais pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, o clássico do cinema novo sobreviveu às últimas décadas como uma obra-prima. E não é para menos. O enredo, estrelado pelo ator Jardel Filho, gira em torno de uma paranoia política cuja finalidade é tirar a esquerda do poder (qualquer semelhança com 2016 é mera coincidência, hein).



Cena do longa-metragem ‘Terra em Transe’ – Foto: Reprodução

Enquanto isso, no comício de Vieira, personagem inspirado em figuras como Miguel Arraes, um sujeito simples se arrasta em meio à multidão e ouve palavras amigáveis de dois apoiadores. Quando a voz do homem se escancara aos berros da miséria de Eldorado, a ação passa a ser embalada por gente ruminando, vejam só!, coisas como “extremista”. Faltou latir os delírios dos asseclas do ex-capitão expulso do Exército por maluquices como fulano é comunista, beltrano é socialista e, portanto, “vão pra Cuba”. Aí, porém, é demais, até para a imaginação glauberiana.

Mesmo com cenas que poderiam muito bem se passar nestes tempos malucos de bolsonarismo fanático, o cineasta levou dois anos para findar a pesquisa de quase 700 páginas que dera origem ao roteiro. O primeiro rascunho, que é datado de 1965, um ano depois de Glauber ser consagrado em Cannes com “Deus e Diabo na Terra do Sol”, conta com referências a homossexualidade, religiões de matrizes africanas, críticas a Petrobras e trabalho escravo. Glauber Rocha não é considerado um gênio à toa.



Cartaz do filme – Foto: Reprodução

“Terra em Transe” foi recebido com polêmica. Embora fosse amante de discussões, o gênio da raça não passou despercebido pelas críticas. “Direita/ centro/ esquerda me detestam. Se alguém quiser me dar um tiro, pode”, disse Glauber em carta. O que, vamos e venhamos, não faz muito sentido. Sim, anos depois, em 1974, o diretor filmou a queda de António Salazar, tirano que assaltou Portugal por décadas com sua ditadura fascista. “As Armadas e o Povo” é uma documentário essencial para entender o cinema-direto em strictu sensu.

Longe do grande público e achincalhado pela esquerda, Glauber adoece. E morre. Aos 42 anos, a grande voz do cinema novo foi-se – de infecção generalizada, disseram os laudos médicos. Há quem, como o jornalista Zuenir Ventura em “Minha Memória dos Outros”, ache que o mal era mesmo tristeza e solidão. Mas, como seu personagem Paulo Martins, Glauber “não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura”. 

Ficha técnica

‘Terra em Transe’

Autor: Glauber Rocha

Gênero: Distopia

Filme disponível no Youtube e no Now, da Claro Net


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