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Aldir Blanc sacudiu os alicerces da ditadura na década de 1970

Nossos ídolos, os defensores da democracia e guardiões dos direitos civis, estão indo embora num Brasil que acelera seu namoro com a demência coletiva. Faleceu nesta segunda-feira (4), no Hospital Universitário Pedro Ernesto, na Vila Isabel, Rio de Janeiro, o cantor, compositor e escritor Aldir Blanc, um dos maiores letristas da Música Popular Brasileira (MPB). Aos 73 anos, Blanc não saia de casa. Vivia recluso na companhia dos livros. Depois de tanto tempo, ao colocar os pés para fora, não voltara mais. Entrara no dia 10 último no Hospital Municipal Miguel Couto, na zona sul da capital fluminense, com infecção urinária e pneumonia.

Blanc não queria nos deixar. Foram 24 dias de luta, resistência e vontade de retornar à sua elegante reclusão com violões, discos, palavras a escrever e filhos e netos. Mas, puxado pelo ímpeto vagabundo da pandemia que ceifa vidas sem pedir autorização, o genial cronista da brasilidade foi-se. Seu rico legado, esse sim, ainda bem, permanecerá vivo. Em mais de cinco décadas de carreira, o autor de “O Bêbado e a Equilibrista” - canção imortalizada pela voz visceral da nossa Edith Piaf, Elis Regina - ficará vivo com seu humor e sua fossa, com seu lirismo e seu devaneio, com seus versos poéticos e libertários.

Bosco e Blanc na década de 1970 - Foto: Reprodução

Nascido em 2 de setembro de 1946, no berço do samba urbano carioca, bairro do Estácio, Aldir Blanc Mendes ingressara, em 1965, na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio. Paralelo ao exercício da psiquiatria, rabiscava poemas e atuava como baterista. Nesta época, o poeta chegou a ser contratado para tocar num programa infantil da TV Globo. O reconhecimento veio com “Amigo É pra Essas Coisas”, parceria com Sílvio da Silva Junior, que ficara em segundo lugar no Festival Universitário, em 1970. No ano seguinte, Elis interpretou “Ela”, no disco de mesmo nome, música de Blanc e César Costa Filho.

Em definitivo, Blanc abandonara a medicina após a morte, em 1974, de Maria e Alexandra, gêmeas que seriam as primeiras filhas de seu casamento com a professora Ana Lúcia. “Ela morreu sangrando por todos os orifícios: ouvidos, nariz, boca. Aí o seguinte: se não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso que eu quero fazer", contou ao jornalista Luiz Fernando Vieira, em depoimento que pode ser lido na biografia “Aldir Blanc: Resposta ao Tempo”, de 2013. A essa altura, após desistir do ofício do jaleco branco, o compositor já formava com João Bosco uma das mais importantes parcerias da MPB.

"O Bêbado e a Equilibrista” virou um hino contra a ditadura militar e mantém sua atualidade no nosso contexto obscurantista atual". Diego de Moraes Campos, doutorando em História Social pela UFRJ

Elis recebia em primeira mão as novidades da dupla. Após assinarem “Mestre-Sala dos Mares” e “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, Blanc e Bosco fizeram, em 1978, a música que se tornara a trilha sonora da Lei da Anistia. ‘“O Bêbado e a Equilibrista” virou um hino contra a ditadura militar e mantém sua atualidade no nosso contexto obscurantista atual”, relata o compositor Diego de Moraes Campos, doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Diego gravou no carnaval deste ano, com Léo Pereira, do Terrorista da Palavra, uma marchinha no bloco “Não é Não”, onde faz referência a Blanc.

Blanc compôs grandes clássicos da MPB - Foto: Reprodução/ Facebook

“Aldir Blanc é sinônimo de democracia”, define o poeta e compositor Xexéu, do conjunto de samba NoyseNoys. Para ele, o compositor se notabilizou em sua obra por ser um fervoroso defensor das liberdades e dos direitos civis. “Blanc era um poeta que sempre lutou pela liberdade de forma tênue e sutil. Suas letras, tão atuais, continuarão nos trazendo a força necessária para lutarmos por um Brasil mais justo, igual e fraterno”, diz. A parceria Bosco-Blanc faz referências ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, nos porões do Doi-Codi paulistano, e falou que o Brasil “sonha com a volta do irmão do Henfil”.

Parceria Bosco-Aldir Blanc

A frutífera parceria entre João Bosco e Aldir Blanc acabou, sem farpas, em 1982. Era como se, com o País às portas da redemocratização, lá pelos idos de 1980, a dupla não fizesse mais sentido, as letras estivessem fora de contexto e o som deles não fosse relevante. Com o término, cada um foi para um lado: Blanc trabalhou com os músicos Guinga (“Catavento e Girassol”), Moacyr Luz (“Coração do Agreste”, tema da novela global “Tieta”, cantada por Fafá de Belém) e Cristão Bastos. O compositor ainda assinou “Resposta ao Tempo”, uma de suas músicas mais belas, com a cantora Nana Caymmi.

Bosco e Blanc reencontraram-se em 2002 para regravar o hino “O Bêbado e a Equilibrista”. “Aldir foi mais que um amigo para mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que fala em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele estava comigo”, escreveu João Bosco, no Instagram. O instrumentista afirmou ainda que esta segunda-feira (4) foi um dos dias mais tristes de sua vida. “Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas músicas até onde eu tiver forças”.

Em 2005, Blanc lançou o disco “Vida Noturna”, obra marcada pelo lirismo boêmio que lhe alçara ao panteão dos grandes de nossa música. Vascaíno, escreveu sobre o time do coração e, em entrevista ao jornal O Globo, em 2008, disse que torceria para o clube cruzmaltino estando, ou não, na segunda, terceira, quarta divisão. Tecia ainda críticas ao cartola fanfarrão Eurico Miranda. Blanc notabilizou-se por ser cronista do estilo de vida carioca. Nos anos de chumbo da ditadura civil e militar, publicava seus escritos no jornal O Pasquim. E nos últimos tempos, embora menos do que no passado, veiculava as palavras que produzia no Globo.

“Ironias da história, a sua morte ocorreu um dia depois de o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, capitão reformado do Exército e que venera Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador, desprezar as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), de distanciamento social, para conter a pandemia, e dar anuência à uma manifestação que exigia a volta dos homens de coturno e uniforme verde-oliva, com uma agenda liberal. Como em 1964”, acrescenta o jornalista e sociólogo Renato Dias, pesquisador dos ‘Anos de Chumbo e de Ouro no Brasil e na América Latina’. Que falta vais fazer, Aldir Blanc, que falta. Obrigado!

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